quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

11 de fevereiro de 2009


O que pretendo mostrar nessa edição é a diferença entre a realidade que pretendemos, e a realidade como está - sobre o saber. Nossa pretensão sobre a realidade não tem nada que ver com a realidade em si, e por pensar assim trago textos como o de Robert Musil que nos diz muito claramente sobre como é intocável essa parcela do mundo comum, e como nós estamos a ser seguidos por essa 'verdade' - que é antes um saber. Nem sequer conseguimos nos distrair de paixões em um sentido geral. Para esse problema temos o saber não mais como algo indeterminadamente real, que atravesse todos os paradigmas, e por isso estaria pronto para mostrar outros mais. Temos o saber aqui como uma ferramenta a mais, a ser administrada, sem a qual somos menos, e com o uso indevido da mesma somos igualmente menos. Montaigne está a explicar essa parte da questão. Mas isso nos leva a questionamentos sobre nossa liberdade de se saber, e como se pode saber, e ser assim, mesmo ignóbil. Percebemos o saber como algo a diferenciar castas, a determinar cargos, a definir grupos, e buscamos incessantemente obtê-lo para ter o controle sobre essa forma de se dar com a vida. E se voltamos ao primeiro trecho dessa reflexão, vemos que tem algo que não podemos de forma alguma dominar com essas duas mãos que temos. Porém, com Vergílio Ferreira podemos tomar noção dessa nossa condição, de humanos, onde estamos a escolher e descobrir nossas escolhas. Como o descobrir sobre a realidade seria antes um descobrir sobre nós mesmos!

Após afirmar e reafirmar, talvez o mesmo, e talvez outra coisa (o que uma boa releitura, para os dispostos e benfeitores do entendimento, faria esclarecer) trago a afirmação final do saber, que é em seu fundamento, de utilidade limitada, talvez por sermos nós próprios limitados também. Sendo então importante algo que se diz entre samurais: "o estudo da espada segue o estudo das letras" - ambos devem caminhar juntos. O saber não tem valor isolado em lugar nenhum!


Sávio

O comportamento - Robert Musil


O saber é uma forma de comportamento, uma paixão. No fundo, um comportamento ilícito; porque, tal como a dependência do álcool, de sexo ou da violência, também a compulsão de saber molda um carácter em desequilíbrio. É um erro pensar que o investigador persegue a verdade; de facto, é ela que o persegue a ele. É ele que tem de suportá-la. A verdade é verdadeira, o facto é real, sem se preocuparem com ele: ele é que sofre da paixão, da dipsomania dos factos que define o seu carácter, e está-se nas tintas para saber se as suas descobertas levarão a alguma coisa de total, humano, perfeito ou o que quer que seja. É uma natureza contraditória, sofredora e, ao mesmo tempo, incrivelmente enérgica.

Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades'

Intermitências - Michel de Montaigne


Amo e honro o saber, tanto como aqueles que o têm; dando-se-lhe o verdadeiro uso, é a mais nobre e poderosa aquisição dos homens. Mas aqueles, e são em número infinito, que nele alicerçam o seu valor e a sua fundamental capacidade, que abdicam da inteligência na memória, acolhidos à sombra alheia, e nada podem senão pelos livros - nesses aborreço-o eu, se ouso dizê-lo, um pouco mais do que a estupidez. Na minha terra e no meu tempo, a sabedoria melhora bastante as bolsas, raramente os espíritos. Se os encontra obtusos, pesa sobre eles e sufoca-os com a sua massa informe e indigesta; se lestos, logo os purifica, clarifica e subtiliza até o esgotamento. É coisa de qualidade quase indecisa; instrumento muito útil às almas bem formadas, pernicioso e daninho às outras; ou antes, coisa de preciosíssima utilidade que se não obtém barata; em certas mãos é um ceptro, noutras uma folia.

Michel de Montaigne, in 'Da Arte de Discutir'

A liberdade - Vergílio Ferreira


Aquilo que «actua» sobre mim só actua porque eu o escolhi como actuante. Não é porque alguém me ofenda que eu reajo violentamente, mas sim porque escolho tal ofensa como «móbil» da minha reacção. Tal escolha, porém, de um móbil, posso não reconhecê-la senão depois de se manifestar. Assim são normalmente os meus actos que me esclarecem sobre o que realmente sou, sobre aquilo que realmente escolhi, sobre a minha liberdade.
Mas isso não significa que eu seja «inconsciente», já que, segundo Sartre, o homem é consciência de ponta a ponta, em todos os seus aspectos. Simplesmente, há consciência posicional, reflectida, e consciência não-posicional, não reflectida. A minha liberdade é de facto consciente, mas só os meus actos claramente ma revelam. Em qualquer situação portanto, eu «sou consciência de liberdade». Assim a minha liberdade é o estofo do meu ser.

Vergílio Ferreira, in 'O Existencialismo é um Humanismo (Préfacio)'

Entender - Vergílio Ferreira


Como é difícil entendermo-nos com a vida. Nós a compor, ela a estragar. Nós a propor, ela a destruir. O ideal seria então não tentarmos entender-nos com ela mas apenas conosco. Simplesmente o nós com que nos entendêssemos depende infinitamente do que a vida faz dele. Assim jamais o poderemos evitar. E todavia, alguns dir-se-ia conseguirem-no. Que força de si mesmos ou importância de si mesmos eles inventam em si para a sobreporem ao mais? Jamais o conseguirei. O que há de grande em mim equilibra-se nas infinitas complacências da vida que me ameaça ou me trai. E é nesses pequenos intervalos que vou erguendo o que sou. Mas fatigada decerto de ser complacente, à medida que a paciência se lhe esgota em ser intervalarmente tolerante, ela vai-me sendo intolerante sem intervalo nenhum. E então não há coragem que chegue e toda a virtude se me esgota na resignação. É triste para quem sonhou estar um pouco acima dela. Mas o simples dizê-lo é já ser mais do que ela. A resignação total é a que vai dar ao silêncio.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 4'