domingo, 13 de dezembro de 2009

13 de dezembro de 2009 - Da vaidade


Agir para um indivíduo é saber da única forma que tem para tal, inquestionável. E agir mesmo é cheio de engasgos. A saliva precipita e se cospe nas palavras improvisadas. Agir mesmo é não haver o que o contenha; quem age eleva-se no patamar da própria força, segura firme na atitude, e se não o faz, já errou.

Do calor da vaidade - Nicolas Malebranche


Os homens não estão cientes do calor que emana do seu coração, embora ele dê vida e movimento a todas as outras partes do seu corpo. (...) O mesmo se dá com a vaidade: ela é tão natural para o homem que ele não a percebe. E, embora seja isso que dê, por assim dizer, vida e movimento à maioria dos seus pensamentos e desígnios, isso ocorre de um modo que é imperceptível para o sujeito. (...) Os homens não percebem suficientemente que é a vaidade que dá ímpeto à maioria de suas acções.

Nicolas Malebranche, in 'Procura da Verdade'

sábado, 21 de novembro de 2009

22 de novembro de 2009 - Do possuir


Fui consumido pela lucidez da tua cachaça!

Sávio

Contra o possuir - Kafka


Não existe nenhum possuir, somente um ser, somente um ser exigente até o último alento, até à asfixia.

Franz Kafka

domingo, 15 de novembro de 2009

15 de novembro de 2009 - Sobre princípios (revisitado)


Ao coração a honra, o peito aberto, despoluído das complicações que vêm da culpa, da piedade desnecessária, da vergonha. Inimigos vorazes que sem que se veja transformam tudo em coisa desfigurada, e desgastam os sentimentos, aos poucos a vida. É lutando contra os moinhos que Dom Quixote antes de olhar a lama viu a glória, que sem dar-lhe sujeira corrosiva, deu-lhe a sujeira provinda do empenho.

Cyrano nos ajuda nessa compreensão a seguir...

Sávio

Levado pelo coração - Edmond Rostand


“LE BRET: Fique sozinho se quiser! Mas sem brigar com todo mundo! Como diabos você concebeu essa idéia maluca de fazer inimigos a cada momento?

CYRANO: Foi vendo como você faz os seus amigos - e como os trata com afetação, sorrindo de orelha a orelha! Eu passo alegremente, embora sem saudações, e grito - Quê! Outro inimigo?

LE BRET: Loucura!

CYRANO: Bem, que fazer se é meu vício? O que me agrada é desagradar - odeio amar os homens! Ah, meu amigo, acredite em mim, eu marcho melhor em meio ao fogo - cruzado dos olhares inimigos! Que graça existe nas roupas apertadas, no amargor da inveja ou nas besteiras de um poltrão? - a enervante amizade que o envolve é como um colarinho italiano largo flutuando ao redor de seu pescoço, como fazem as mulheres; pode - se levar bem a vida assim, mas será menos orgulhosa a carruagem! A testa, livre de dependência ou coerção, franze aqui, ali, em toda parte. Mas eu, abraçando o ódio que ela empresta - proibindo com rigor as rugas, a dureza da gola é que mantém a cabeça rígida; cada inimigo - uma ruga, uma dobra, que adiciona constrangimento e um raio de glória; pois o ódio, como a gola espanhola, prende como um vício, mas empresta
a cada um uma auréola!

LE BRET: Oh! Deixe de lado aquele orgulho de mosqueteiro, de que Fortuna e Glória o esperam!...

CYRANO: Sim, que mais?... Procurar um protetor, encontrar um patrono e, como a rasteira hera, que se agarra à casca da árvore para apoiar - se no tronco, chegar ao topo ficando de joelhos ao invés de usar a força? Não, muito obrigado! Ora! Eu, como todo o resto, dedicar versos aos banqueiros? - bancar o palhaço na balconista esperança de ver, finalmente, um sorriso que não seja de desaprovação nos lábios do benfeitor? Não, muito obrigado! Ora! Aprender a engolir sapos? - Com o esqueleto cansado subir escadas? - Ter uma pele suja e áspera, - aqui, sobre os joelhos? E, como um acrobata, ensinar minhas costas a se curvarem? - Não, muito obrigado! Ou, - cínico e dissimulado - andar com as lebres e caçar com os sabujos; e, língua untada de azeite, para obter o óleo do elogio, louvar o grande homem pelo seu grande nariz? Não, obrigado! Infiltrar-se lentamente em cada dobra - um pequeno grande homem num diminuto círculo de amizades, ou navegar, tendo madrigais por vela, sopradas à barlavento pelos suspiros de velhas damas? Não, muito obrigado! Subornar adoráveis editores para disseminar meus versos fora do país? Muito Obrigado! Ou tentar se elege o Papa das tavernas apoiado por imbecis? Não, muito obrigado! Trabalhar com afinco para ganhar reputação por meio de um soneto ao invés de muitos? Não, muito obrigado! Elogiar torpes incompetentes? Ser aterrorizado por cada jornal sensacionalista? Repetir incessantemente: ‘Oh, tivesse eu a chance de ser notícia no “Mercúrio”!’ Muito Obrigado, não! Tornar-me pálido, medroso, calculista? Preferir uma visita a um verso? Procurar introduções, escrever petições? Não, muito obrigado! E não! E não novamente! Mas - cantar? Sonhar, rir, viver sem causa, solitário, livre, com olhos que olham sempre em frente - sem medo na voz! Levantar o chapéu como você bem entende - pelo que um ‘sim’ ou ‘não’ pode terminar em briga ou em verso! - Trabalhar, sem um único pensamento no lucro ou na fama, para seguir em jornada à lua! Nunca escrever uma linha que não pareça ter saído do fundo do coração. Abraçando a modéstia, diga a alguém: ‘Meu bom amigo, seja feliz com estas flores - frutas - não, versos, mas colha-os não do jardim, mas do teu coração!’ e então, se a glória vier ao acaso, não pague tributo a César nenhum, mas conserve o mérito consigo. Resumindo, despreze os filhos dos parasitas para ser feliz, como fazem o carvalho e o olmo - não para crescer às alturas, talvez, mas para crescer sozinho!”

Edmond Rostand in Cyrano de Bergerac

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

2 de novembro de 2009 - Da decisão

É um canto do Eu!

Sávio

Os argumentos - Vergílio Ferreira


"Não há argumentos que bastem para a segurança de uma adesão. O último argumento somos nós. E esse é que é decisivo."

Vergílio Ferreira

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

23 de outubro de 2009 - Sobre o medo


Força que temos e que não canta a todo momento.

O medo sussurra uma atitude, o mesmo medo deixa-nos uma porta aberta, porque o sussurro que é sua arma, é também seu limite. Rubem Alves esclarece.

Sávio

Do medo - Rubem Alves


O medo não é uma perturbação psicológica.
Ele é parte de nossa própria alma.
O que é decisivo é se o medo nos faz rastejar ou
se ele nos faz voar. Quem, por causa do medo, se
encolhe e rasteja, vive a morte na própria vida.
Quem, a despeito do medo, toma o risco e voa,
triunfa sobre a morte. Morrerá, quando a morte vier.
Mas só quando ela vier.

Rubem Alves

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

17 de setembro de 2009 - Ensaio do ciúme


Arreda a si mesmo para o canto, ignorando as vontades súbitas que tentam agir antes do aval, e são nocivas por isso. Atitude que não nega só a conquista porque agride antes e depois do afago, mas a paz que se busca quando se tem. É o princípio do nosso contraditório, a dor que se sente porque aprendeu, porém inevitável. A loucura incontornável, faz maior do que é a noção do respeito, colocando-o como noção de lei, e dando-lhe novos membros, estes inventados. Trata-se de um ensaio do ciúme.

O texto a seguir é algo de experiência...

Sávio

Da propriedade - Vergílio Ferreira

"O ciúme. Que irritante. Ele é uma expressão da avidez da propriedade. Ou da petulância do domínio. Ou do gosto da escravização"

Vergílio Ferreira

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

24 de agosto de 2009 - Argumentos acerca da paixão


Os meus passos são seguidos por algo. Eu olha atrás e nada além da minha sombra. Deitado então em minha cama ainda um pensamento me acorda repetidas vezes antes de me despertar de fato, ele foge tão logo posso assimilá-lo, mas eu sei do que se trata...

Existe algo que é indizível, mas eu sei pra onde aponta. Não me assusta, não se trata de um medo, nem de crenças cegas. É um direito de se darem os acontecimentos. A realidade vem humorada de algo e nos saúda a seu modo!

Boa leitura do texto a seguir...

Sávio

Uma saudação - Cesare Pavese


Qualquer género de fervor acarreta consigo a tendência para sentir uma lei preestabelecida na vida, uma lei que castiga os que abusam ou descuram esse mesmo fervor. Um estado de paixão - mesmo que fosse a embriaguez da absoluta autodeterminação - organiza e anima de tal forma o Universo que toda a desgraça, parece, depois, provocada por uma ruptura do equilíbrio vital dessa paixão difusa, que, assim, se defende como um corpo vivo. E, segundo o temperamento de cada um, teremos a sensação de que abusámos, ou de que fomos inferiores; de qualquer forma, sentir-nos-emos organicamente punidos pela própria lei da paixão e do Universo.
O que quer dizer que todo o fervor acarreta consigo a convicção supersticiosa de ter de prestar contas à própria lógica das coisas. Mesmo o fervor de um ateu pela transcendência de uma lei.

Cesare Pavese, in "O Ofício de Viver"

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

5 de agosto de 2009 - O vigor presente na Finitude


Vigorar parece tornar-se infinito em cada experiência. Antes como ausentar-se da morte, agora como administrar sua presença, para que o fim, não seja, exatamente, fim. Assim desenvolve adiante Musil em sua clara consideração.

Sávio

A maneira de se viver - Robert Musil


A morte é apenas uma consequência da nossa maneira de viver. Vivemos de pensamento em pensamento, de sensação em sensação. Os nossos pensamentos e as nossas sensações não correm tranquilamente como um rio, «ocorrem-nos», caem em nós como pedras. Se te observares bem, sentirás que a alma não é algo que vai mudando de cor em gradações progressivas, mas que os pensamentos saltam dela como algarismos saindo de um buraco negro. Neste momento tens um pensamento ou uma sensação, e no seguinte aparece outro, diferente, como que saído do nada. Se deres atenção, até podes sentir o instante entre dois pensamentos, quando tudo se torna negro. Esse instante, uma vez apreendido, é para nós o mesmo que a morte.

Robert Musil, in 'O Jovem Torless'

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

3 de agosto de 2008 - Mais uma alusão à Convicção


Os passos seguintes surgem logo que os anteriores são dados. Eu não preciso saber dos vindouros, só preciso dar os passos que consigo. A isso alguns chamam fé. Eu dou esses passos na medida do mundo que alcanço, na medida dos sentimentos que descobrem as formas e texturas. Não pude olhar sempre nos olhos, e nem por isso fui covarde. A coragem fraquejou e me adaptei ao modo de mantê-la. Não tive crenças que me sustentassem por algumas tempestades, e por vezes parei de tentar guiar o barco porque já não tinha forças, e o vento botava tudo a perder; no dia seguinte o céu se abria sem nuvens. Não cumpri todas as promessas, e esse é o ponto onde a compreensão dos princípios passa pela experiência. Eles não podem acontecer separados, é no dia-a-dia que eles existem, e no dia-a-dia são escritos, eu encontro eles quando os leio em momentos oportunos, porque senão não cabem.
As coisas têm de caber não é verdade? A vida trata de desfazer os imperativos, afunda Titanics e desfaz atos de proporções alexandrinas. Algo atravessa isso tudo, e vamos entendendo isso na medida em que temos motivos para entender. Buscamos algo, e no limiar do século XX chegamos ao ponto de dizer, com certeza na voz, que o arbítrio é gratuito, que as coisas são todas eventuais. Tenho motivos pessoais agora, os quais não conseguiria provar, nem o quero, para crer que saímos no mundo à caça de motivos. Estamos, depois de vivermos tanto tempo na modernidade inaugurada em torno de Baudelaire, onde um dos prazeres da arte consiste em quebrar os paradigmas, à caça de algo que não devia ser quebrado. Essa curiosidade deve ter algum limite.
O texto que coloco aqui em seguida, na proposta que faço, deve servir não para o que ele mesmo diz com cada palavra, mas o que ele nos diz quando o lemos em meio ao tráfego de nossas vidas. O que ele deixa passar, o que perdeu, o que ganhou, o que conseguiu. A minha proposta é sermos mais porque o questionamento da CONVICÇÃO ganha novos terrenos!

Sávio

As duas inconstâncias - Rochefoucauld


Não pretendo justificar aqui a inconstância em geral, e menos ainda a que vem só da ligeireza; mas não é justo imputar-lhe todas as transformações do amor. Há um encanto e uma vivacidade iniciais no amor que passa insensivelmente, como os frutos; não é culpa de ninguém, é culpa exclusiva do tempo. No início, a figura é agradável, os sentimentos relacionam-se, procuramos a doçura e o prazer, queremos agradar porque nos agradam, e tentamos demonstrar que sabemos atribuir um valor infinito àquilo que amamos; mas, com o passar do tempo, deixamos de sentir o que pensávamos sentir ainda, o fogo desaparece, o prazer da novidade apaga-se, a beleza, que desempenha um papel tão importante no amor, diminui ou deixa de provocar a mesma impressão; a designação de amor permanece, mas já não se trata das mesmas pessoas nem dos mesmos sentimentos; mantêm-se os compromissos por honra, por hábito e por não termos a certeza da nossa própria mudança.
Que pessoas teriam começado a amar-se, se se vissem como se vêem passados uns anos? E que pessoas se poderiam separar se voltassem a ver-se como se viram a primeira vez? O orgulho, que é quase sempre senhor dos nossos gostos, e que nunca está saciado, sentir-se-ia infinitamente lisonjeado por um novo prazer; a constância perderia o seu mérito: deixaria de fazer parte de uma ligação tão agradável, os favores actuais teriam o sabor dos primeiros favores e as recordações não fariam a menor diferença; a inconstância seria desconhecida e as pessoas amar-se-iam sempre com o mesmo prazer, porque teriam sempre os mesmos motivos para se amarem. As transformações da amizade têm mais ou menos as mesmas causas que as transformações do amor: as suas regras são muito semelhantes. Se um tem mais alegria e prazer, a outra deve ser mais serena e mais severa porque nada perdoa; mas o tempo, que muda o humor e os interesses, destrói-os quase do mesmo modo. Os homens são demasiado fracos e demasiado mutáveis para suportar muito tempo o peso da amizade. A Antiguidade deu-nos os exemplos; mas no tempo em que vivemos, pode afirmar-se que é ainda menos impossível encontrar um amor verdadeiro do que uma verdadeira amizade.

La Rochefoucauld, in 'Reflexões'

terça-feira, 10 de março de 2009

10 de março de 2009

Minha proposta desse mês é a originalidade, mas não vou falar sobre a originalidade, escrevo pra tentar entender o ato de se escrever. A originalidade do criador. E como primeira idéia para expressar isso, que é como passar adiante alguma experiência, penso em representar essa originalidade através de textos de Vergílio Ferreira, um dos grandes autores de nossa era. E pego um a mais, o Eugênio de Andrade, fantástico!

O que proponho é entender a originalidade na criação em um desenrolar do ato, por isso um literato, e por isso seus textos auto-analíticos. Olhando de perto antes de mais nada o escrever, será observado aquilo que é considerável, levantando para questão o gosto, ousando dizer sobre o bom e o mau gosto. Dizer que escrever mal não é um simples desleixo, é um estado de espírito para o qual muitos se inclinam quase sempre. E para isso se inclina para fora de si, para tentar imitar ou copiar, tentar levar adiante algo que não vem do próprio ímpeto [Ímpeto: (Do latim impetu) Manifestação súbita e violenta; Movimento arrebatado; Pressa irrefletida; Impulso; Ataque; Precipitação; Fúria; Furor...]. Expressar o ato poético nesse momento me pareceu muito conveniente, talvez perspicaz.

A motivação da criatividade então, por tudo isso, não me parece ser uma inspiração súbita, a iluminação do nada. Ela é, através dessas óticas, um labor, um esforço continuado e suado, convicto, e por isso valoroso, atrás daquilo que se aprecia de forma até inocente. É um hábito às vezes empurrado, às vezes necessário. E nesse hábito foi descobrir-se o homem, o sujeito, o aventureiro. O ato de descobrir o escrever através da sua própria formulação. E porque se escreve? Porque os não-grandes sacrifícios podem perigar ao nada; só erigindo, no caso escrevendo, alguma coisa vale por nós, em nós, que somos nós mesmos atuando. É conseguirmos encontrarmo-nos, é através da arte, escrever sobre o que todos escrevem, ou do que já foi pensado, mas ainda assim ser inaugural e por isso ter encontrado aquilo que foi você desperto em meio ao sono da humanidade. E os despertos, ainda que mortos, vigoram dialogando entre si, entre os vivos, que os lêem, e assim intrigam, assim inauguram algo todos os dias ainda.
obs.:e para consideração dessa importância, rever a citação 6/12/2008, de Agustina Bessa-Luís, a que trata da importância.

Sávio

O bem escrito - Vergílio Ferreira

Que ridículo e mesmo estúpido dizer-se de um livro que está bem escrito. Não é «bem escrito» que está. Está é sentido originalmente, original nas observações, inteligente na reflexão. É por isso que não se pode imitar. Pode-se é ser original de outra maneira. Há realmente livros que são apenas «bem escritos». São os livros banais, com palavras trabalhadas ao torno, frases que se pretendem «despojadas», reduzidas ao «essencial», e cruas. Mas como o que nelas está não representa um sentir originário, nem uma observação imprevista, nem uma reflexão que nos surpreenda pela justeza e profundidade, o que delas resulta é uma construção pretensiosa, estéril e quase sempre irritante. Decerto um romance (como a poesia segundo Mallarmé e como creio já ter dito), faz-se com palavras. Pois com que é que havia de fazer-se? Mas antes disso faz-se com o impulso animador a essas palavras e que assim não passa bem por elas mas por entre elas, fazendo delas apenas um apoio para passar além, como o som passa pelas cordas mas existe por entre elas e é nesse som o indizível que nos emociona. O que nos fica de um livro «bem escrito» é essa emoção que já não lembra as palavras e vive por si.

Eis porque tal livro é inimitável e apenas poderá repetir-se, ou seja plagiar-se. Imitar verdadeiramente esse livro é recompor uma emoção afim e inventar outras palavras que traduzam esse sentir, ou seja que lhe sirvam de pretexto ou estratagema para que esse sentir (e pensar/sentir) se realize como a música nas cordas de um instrumento. O escritor medíocre imagina que todo o seu trabalho deve incindir no trabalhar uma frase. Ora não é a frase que tem de se trabalhar: é aquilo que há-de passar por ela. Os autores célebres que trabalharam a frase, na realidade trabalharam apenas aquilo que haviam de exprimir; testaram na frase a realização de uma expressão. O escritor medíocre dá como já adquirido o que haveria a dizer e todo o seu esforço é secar o período, burilar ou envernizar o vocábulo. E no fim de contas, este é que «escreve bem». Mas quem assim escreve bem, escreve bastante mal. Não digo rasamente que o «conteúdo» preceda a sua «expressão». Mas o que preexiste à expressão não é um puro nada. Exprimir é operar e concretizar esse algo. Mas esse algo existe. Escrever bem, como se diz, é realizar pela escrita um «bem» que aí se revela mas que está antes e depois disso em que se revela. Escreve-se bem com o espírito e a sensibilidade - não com um dicionário. Embora seja no dicionário que está toda a obra-prima. Como na pedra está toda a melhor escultura.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 4'

Vamos conhecer - Vergílio Ferreira

Vê se não insistes muito em perguntar porquê ou para quê, se não queres ficar paralítico. Porque a maior grandeza da vida tem o valor nela própria e não fora dela. Não se pode justificar a vida senão nela. Ou a luz. Ou a fraternidade humana. Ou a justiça. E o mais assim. E é o que é indiscutível que pode fundar um comportamento e uma razão de se estar vivo.
É fácil ainda inventar ou ter razões para se atentar contra o que é indiscutível. Porque se é indiscutível, não se pode discutir. E se se discute, o valor deixa de existir. Toda a cultura ou civilização assenta em pressupostos que não exigem uma demonstração e permanecem assim no intocável que é seu. Eis que no nosso tempo, como em nenhum outro, o fundamental para a vida se determina pela negação. A arte foi como sempre o grande arauto da nossa terra queimada. Negar. Destruir. Porque tudo se contamina da possibilidade de negação. Das artes e as letras ao comportamento social.
E curiosamente a mais manifesta negação é a que se refere ao tabu sexual. E o que mais se destaca aí é o uso a frio das maiores obscenidades. E o que mais se evidencia nisso é a redução do acto amoroso ao que nele é animal. Tudo o que se refere à nossa animalidade tem um duplo vocabulário segundo exprime aí elevação e baixeza. Utilizar friamente a obscenidade é reduzir o mais alto ao mais baixo, para que o bode o cão ou o cavalo afirmem a sua razão de ser contra a razão de ser humano. O nosso tempo exige não ter tabus. É a forma de exigir que se seja cavalo ou bode.

Vergílio Ferreira, in "Escrever"

O ato poético - Eugénio de Andrade

O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo do conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças do que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.

Eugénio de Andrade, in 'Rosto Precário'

Escreve e não perguntes - Vergílio Ferreira

Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Concentram-se, fazem um esforço de contensão beata e lá conseguem. Esperam a graça e às vezes ela vem. Escrever é orar sem um deus para a oração. Porque o poder da divindade não passa apenas pela crença e é aí apenas uma modalidade de a fazer existir. Ela existe para os que não crêem, como expressão do sagrado sem divindade que a preencha. Como é que outros escrevem em agnosticismo da sensibilidade? Decerto eles o fazem sendo crentes como os crentes pelo acto extremo de o manifestarem. Eles captarão assim o poder da transfiguração e do incognoscível na execução fria do acto em que isso deveria ser. Escreve e não perguntes. Escreve para te doeres disso, de não saberes. E já houve resposta bastante.

Vergílio Ferreira, in "Pensar"

Trazendo pra si - Vergílio Ferreira

Justamente porque a literatura se funda genericamente na ideia, ela é a mais ameaçada das formas de arte, para lá do que sabemos da sua aparente maior duração. Ou portanto a mais equívoca. Ou a mais mortal. Porque nas outras artes, a ideia é a nossa tradução do seu silêncio, o modo de uma emoção ser dita ou seja transaccionável, um modo irresistível de explicar, uma forma afinal de dominarmos o que nos domina, porque nomear é reduzir ao nosso poder aquilo que se nomeia. Mas a forma de arte não discursiva permanece intacta ao nosso nomear. A literatura, porém, é nesse nomear que começa. Na relação da emoção com a palavra que a diz, o seu movimento é inverso do que acontece com a música ou a pintura. A emoção de um quadro resolve-se numa palavra terminal. Mas a literatura parte-se dessa palavra para se chegar á emoção. Assim pois a «ideia» é o seu elemento nuclear, ainda que uma associação imprevisível de palavras a disfarce.

Vergílio Ferreira, in 'Arte Tempo'

Os intrigantes itens - Ana Hatherly

Os tentáculos da escrita. A escrita é um polvo, um molusco versátil. Tem infinitos recursos. Escapa sempre. Abstractiza-se. Disfarça-se, adensa-se, adelgaça-se, esconde-se. Impele-se rápida. Compreende tudo: ascese, consolo íntimo, entrega; fluxos, refluxos, invasões, esvaziamentos, obstinação feroz. O seu rigor é místico. É uma infinita demanda. Perscruta o inaudito. Sideral Alice atravessa todas as portas, todos os espelhos. Cruza, descobre, inventa universos. A escrita é um fragmento do espanto, já alguém o disse.

Ana Hatherly, in 'Tisanas'

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

11 de fevereiro de 2009


O que pretendo mostrar nessa edição é a diferença entre a realidade que pretendemos, e a realidade como está - sobre o saber. Nossa pretensão sobre a realidade não tem nada que ver com a realidade em si, e por pensar assim trago textos como o de Robert Musil que nos diz muito claramente sobre como é intocável essa parcela do mundo comum, e como nós estamos a ser seguidos por essa 'verdade' - que é antes um saber. Nem sequer conseguimos nos distrair de paixões em um sentido geral. Para esse problema temos o saber não mais como algo indeterminadamente real, que atravesse todos os paradigmas, e por isso estaria pronto para mostrar outros mais. Temos o saber aqui como uma ferramenta a mais, a ser administrada, sem a qual somos menos, e com o uso indevido da mesma somos igualmente menos. Montaigne está a explicar essa parte da questão. Mas isso nos leva a questionamentos sobre nossa liberdade de se saber, e como se pode saber, e ser assim, mesmo ignóbil. Percebemos o saber como algo a diferenciar castas, a determinar cargos, a definir grupos, e buscamos incessantemente obtê-lo para ter o controle sobre essa forma de se dar com a vida. E se voltamos ao primeiro trecho dessa reflexão, vemos que tem algo que não podemos de forma alguma dominar com essas duas mãos que temos. Porém, com Vergílio Ferreira podemos tomar noção dessa nossa condição, de humanos, onde estamos a escolher e descobrir nossas escolhas. Como o descobrir sobre a realidade seria antes um descobrir sobre nós mesmos!

Após afirmar e reafirmar, talvez o mesmo, e talvez outra coisa (o que uma boa releitura, para os dispostos e benfeitores do entendimento, faria esclarecer) trago a afirmação final do saber, que é em seu fundamento, de utilidade limitada, talvez por sermos nós próprios limitados também. Sendo então importante algo que se diz entre samurais: "o estudo da espada segue o estudo das letras" - ambos devem caminhar juntos. O saber não tem valor isolado em lugar nenhum!


Sávio

O comportamento - Robert Musil


O saber é uma forma de comportamento, uma paixão. No fundo, um comportamento ilícito; porque, tal como a dependência do álcool, de sexo ou da violência, também a compulsão de saber molda um carácter em desequilíbrio. É um erro pensar que o investigador persegue a verdade; de facto, é ela que o persegue a ele. É ele que tem de suportá-la. A verdade é verdadeira, o facto é real, sem se preocuparem com ele: ele é que sofre da paixão, da dipsomania dos factos que define o seu carácter, e está-se nas tintas para saber se as suas descobertas levarão a alguma coisa de total, humano, perfeito ou o que quer que seja. É uma natureza contraditória, sofredora e, ao mesmo tempo, incrivelmente enérgica.

Robert Musil, in 'O Homem sem Qualidades'

Intermitências - Michel de Montaigne


Amo e honro o saber, tanto como aqueles que o têm; dando-se-lhe o verdadeiro uso, é a mais nobre e poderosa aquisição dos homens. Mas aqueles, e são em número infinito, que nele alicerçam o seu valor e a sua fundamental capacidade, que abdicam da inteligência na memória, acolhidos à sombra alheia, e nada podem senão pelos livros - nesses aborreço-o eu, se ouso dizê-lo, um pouco mais do que a estupidez. Na minha terra e no meu tempo, a sabedoria melhora bastante as bolsas, raramente os espíritos. Se os encontra obtusos, pesa sobre eles e sufoca-os com a sua massa informe e indigesta; se lestos, logo os purifica, clarifica e subtiliza até o esgotamento. É coisa de qualidade quase indecisa; instrumento muito útil às almas bem formadas, pernicioso e daninho às outras; ou antes, coisa de preciosíssima utilidade que se não obtém barata; em certas mãos é um ceptro, noutras uma folia.

Michel de Montaigne, in 'Da Arte de Discutir'

A liberdade - Vergílio Ferreira


Aquilo que «actua» sobre mim só actua porque eu o escolhi como actuante. Não é porque alguém me ofenda que eu reajo violentamente, mas sim porque escolho tal ofensa como «móbil» da minha reacção. Tal escolha, porém, de um móbil, posso não reconhecê-la senão depois de se manifestar. Assim são normalmente os meus actos que me esclarecem sobre o que realmente sou, sobre aquilo que realmente escolhi, sobre a minha liberdade.
Mas isso não significa que eu seja «inconsciente», já que, segundo Sartre, o homem é consciência de ponta a ponta, em todos os seus aspectos. Simplesmente, há consciência posicional, reflectida, e consciência não-posicional, não reflectida. A minha liberdade é de facto consciente, mas só os meus actos claramente ma revelam. Em qualquer situação portanto, eu «sou consciência de liberdade». Assim a minha liberdade é o estofo do meu ser.

Vergílio Ferreira, in 'O Existencialismo é um Humanismo (Préfacio)'

Entender - Vergílio Ferreira


Como é difícil entendermo-nos com a vida. Nós a compor, ela a estragar. Nós a propor, ela a destruir. O ideal seria então não tentarmos entender-nos com ela mas apenas conosco. Simplesmente o nós com que nos entendêssemos depende infinitamente do que a vida faz dele. Assim jamais o poderemos evitar. E todavia, alguns dir-se-ia conseguirem-no. Que força de si mesmos ou importância de si mesmos eles inventam em si para a sobreporem ao mais? Jamais o conseguirei. O que há de grande em mim equilibra-se nas infinitas complacências da vida que me ameaça ou me trai. E é nesses pequenos intervalos que vou erguendo o que sou. Mas fatigada decerto de ser complacente, à medida que a paciência se lhe esgota em ser intervalarmente tolerante, ela vai-me sendo intolerante sem intervalo nenhum. E então não há coragem que chegue e toda a virtude se me esgota na resignação. É triste para quem sonhou estar um pouco acima dela. Mas o simples dizê-lo é já ser mais do que ela. A resignação total é a que vai dar ao silêncio.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 4'

sábado, 24 de janeiro de 2009

A ação - Vergílio Ferreira


E depois, meu amigo, enquanto temos um instrumento na mão, não sabemos que temos um instrumento na mão... Todo o gesto, enquanto tal, enquanto se executa, limita-se em si mesmo, esquece a sua origem: toda a acção trai a força que a gerou, porque ela é em si própria um princípio e um fim.

Vergílio Ferreira, in 'Carta ao Futuro'

domingo, 11 de janeiro de 2009

11 de janeiro de 2009

Hoje, no dia 11 de janeiro, depois de muito que passei sem escrever, posto sobre a morte. Sem reflexões parciais, pretendo hoje ser breve, quero ser objetivo, rápido e eficaz, conseguirei? Começo com Epicuro, porque traz uma boa reflexão sobre a morte, como ela nos aflige e como as pessoas dadas como fortes e de bem com a vida a encaram. Depois um toque de lucidez quanto ao momento da morte, quanto ao momento do deixar para trás, quanto a liberdade da morte, entendido por Camus. Temos então uma elocubração sobre como tudo converge para a nossa morte, ela eh o passo decisivo, e sobre isso tem Vergilio Ferreira a discursar. E o vislumbre da finitude com Wittgenstein, sendo sucedido então pelo lugar de se apresentar Françoise Dastur em sua mostra de morte, como o fenômeno de finitude, como a cessação de algo para que se apresente um outra coisa, para que haja liberdade. O processo de desapego dos fenômenos, esse sim parece um bom entendimento do que venha a ser a morte. Ela lança em terra o anterior, e inaugura mais adiante um novo, como duas coisas que não convivem, como a própria morte e vida, a independência absoluta, uma não convive com a outra a não ser no metafórico de uma delas. Então largue de lado o pré-concebido, mate nesse breve instante de leitura o anterior, porque existe algo novo pra entender aqui!

Sávio

Tranquilize-se através do entendimento - Epicuro

Habitua-te a pensar que a morte não é nada para nós, pois que o bem e o mal só existem na sensação. Donde se segue que um conhecimento exacto do facto de a morte não ser nada para nós permite-nos usufruir esta vida mortal, evitando que lhe atribuamos uma idéia de duração eterna e poupando-nos o pesar da imortalidade. Pois nada há de temível na vida para quem compreendeu nada haver de temível no facto de não viver. É pois, tolo quem afirma temer a morte, não porque sua vinda seja temível, mas porque é temível esperá-la.
Tolice afligir-se com a espera da morte, pois trata-se de algo que, uma vez vindo, não causa mal. Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais.

Não há morte, então, nem para os vivos nem para os mortos, porquanto para uns não existe, e os outros não existem mais. Mas o vulgo, ou a teme como o pior dos males, ou a deseja como termo para os males da vida. O sábio não teme a morte, a vida não lhe é nenhum fardo, nem ele crê que seja um mal não mais existir. Assim como não é a abundância dos manjares, mas a sua qualidade, que nos delicia, assim também não é a longa duração da vida, mas seu encanto, que nos apraz. Quanto aos que aconselham os jovens a viverem bem, e os velhos a bem morrerem, são uns ingénuos, não apenas porque a vida tem encanto mesmo para os velhos, como porque o cuidado de viver bem e o de bem morrer constituem um único e mesmo cuidado.

Epicuro, in "A Conduta na Vida"

A primeira liberdade, e o equívoco - Albert Camus

Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.

É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.
É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!

Albert Camus, in 'A Queda'

O passo decisivo - Vergílio Ferreira

O que mais me intriga e dói na nossa morte, como vemos na dos outros, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo. Mesmo que sejas uma personagem histórica, tudo entra de novo na rotina como se nem tivesses existido. O que mais podem fazer-te é tomar nota do acontecimento e recomeçar. Quando morre um teu amigo ou conhecido, a vida continua natural como se quem existisse para morrer fosses só tu. Porque tudo converge para ti, em quem tudo existe, e assim te inquieta a certeza de que o universo morrerá contigo. Mas não morre. Repara no que acontece com a morte dos outros e ficas a saber que o universo se está nas tintas para que morras ou não. E isso é que é incompreensível - morrer tudo com a tua morte e tudo ficar perfeitamente na mesma. Tudo isto tem significado para o teu presente. Mas recua duzentos anos e verás que nada disto tem já significado.

Vergílio Ferreira, in 'Escrever'

Vislumbre da finitude - Ludwig Wittgenstein


A morte não é um acontecimento da vida. A morte não pode ser vivida. Caso se compreenda por eternidade não uma duração temporal infinita, mas a intemporalidade, quem vive no presente é quem vive eternamente. A nossa vida é tanto mais sem fim quanto mais o nosso campo de visão não tem limites.

Ludwig Wittgenstein, in 'Tratado Lógico-Filosófico'