segunda-feira, 24 de agosto de 2009

24 de agosto de 2009 - Argumentos acerca da paixão


Os meus passos são seguidos por algo. Eu olha atrás e nada além da minha sombra. Deitado então em minha cama ainda um pensamento me acorda repetidas vezes antes de me despertar de fato, ele foge tão logo posso assimilá-lo, mas eu sei do que se trata...

Existe algo que é indizível, mas eu sei pra onde aponta. Não me assusta, não se trata de um medo, nem de crenças cegas. É um direito de se darem os acontecimentos. A realidade vem humorada de algo e nos saúda a seu modo!

Boa leitura do texto a seguir...

Sávio

Uma saudação - Cesare Pavese


Qualquer género de fervor acarreta consigo a tendência para sentir uma lei preestabelecida na vida, uma lei que castiga os que abusam ou descuram esse mesmo fervor. Um estado de paixão - mesmo que fosse a embriaguez da absoluta autodeterminação - organiza e anima de tal forma o Universo que toda a desgraça, parece, depois, provocada por uma ruptura do equilíbrio vital dessa paixão difusa, que, assim, se defende como um corpo vivo. E, segundo o temperamento de cada um, teremos a sensação de que abusámos, ou de que fomos inferiores; de qualquer forma, sentir-nos-emos organicamente punidos pela própria lei da paixão e do Universo.
O que quer dizer que todo o fervor acarreta consigo a convicção supersticiosa de ter de prestar contas à própria lógica das coisas. Mesmo o fervor de um ateu pela transcendência de uma lei.

Cesare Pavese, in "O Ofício de Viver"

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

5 de agosto de 2009 - O vigor presente na Finitude


Vigorar parece tornar-se infinito em cada experiência. Antes como ausentar-se da morte, agora como administrar sua presença, para que o fim, não seja, exatamente, fim. Assim desenvolve adiante Musil em sua clara consideração.

Sávio

A maneira de se viver - Robert Musil


A morte é apenas uma consequência da nossa maneira de viver. Vivemos de pensamento em pensamento, de sensação em sensação. Os nossos pensamentos e as nossas sensações não correm tranquilamente como um rio, «ocorrem-nos», caem em nós como pedras. Se te observares bem, sentirás que a alma não é algo que vai mudando de cor em gradações progressivas, mas que os pensamentos saltam dela como algarismos saindo de um buraco negro. Neste momento tens um pensamento ou uma sensação, e no seguinte aparece outro, diferente, como que saído do nada. Se deres atenção, até podes sentir o instante entre dois pensamentos, quando tudo se torna negro. Esse instante, uma vez apreendido, é para nós o mesmo que a morte.

Robert Musil, in 'O Jovem Torless'

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

3 de agosto de 2008 - Mais uma alusão à Convicção


Os passos seguintes surgem logo que os anteriores são dados. Eu não preciso saber dos vindouros, só preciso dar os passos que consigo. A isso alguns chamam fé. Eu dou esses passos na medida do mundo que alcanço, na medida dos sentimentos que descobrem as formas e texturas. Não pude olhar sempre nos olhos, e nem por isso fui covarde. A coragem fraquejou e me adaptei ao modo de mantê-la. Não tive crenças que me sustentassem por algumas tempestades, e por vezes parei de tentar guiar o barco porque já não tinha forças, e o vento botava tudo a perder; no dia seguinte o céu se abria sem nuvens. Não cumpri todas as promessas, e esse é o ponto onde a compreensão dos princípios passa pela experiência. Eles não podem acontecer separados, é no dia-a-dia que eles existem, e no dia-a-dia são escritos, eu encontro eles quando os leio em momentos oportunos, porque senão não cabem.
As coisas têm de caber não é verdade? A vida trata de desfazer os imperativos, afunda Titanics e desfaz atos de proporções alexandrinas. Algo atravessa isso tudo, e vamos entendendo isso na medida em que temos motivos para entender. Buscamos algo, e no limiar do século XX chegamos ao ponto de dizer, com certeza na voz, que o arbítrio é gratuito, que as coisas são todas eventuais. Tenho motivos pessoais agora, os quais não conseguiria provar, nem o quero, para crer que saímos no mundo à caça de motivos. Estamos, depois de vivermos tanto tempo na modernidade inaugurada em torno de Baudelaire, onde um dos prazeres da arte consiste em quebrar os paradigmas, à caça de algo que não devia ser quebrado. Essa curiosidade deve ter algum limite.
O texto que coloco aqui em seguida, na proposta que faço, deve servir não para o que ele mesmo diz com cada palavra, mas o que ele nos diz quando o lemos em meio ao tráfego de nossas vidas. O que ele deixa passar, o que perdeu, o que ganhou, o que conseguiu. A minha proposta é sermos mais porque o questionamento da CONVICÇÃO ganha novos terrenos!

Sávio

As duas inconstâncias - Rochefoucauld


Não pretendo justificar aqui a inconstância em geral, e menos ainda a que vem só da ligeireza; mas não é justo imputar-lhe todas as transformações do amor. Há um encanto e uma vivacidade iniciais no amor que passa insensivelmente, como os frutos; não é culpa de ninguém, é culpa exclusiva do tempo. No início, a figura é agradável, os sentimentos relacionam-se, procuramos a doçura e o prazer, queremos agradar porque nos agradam, e tentamos demonstrar que sabemos atribuir um valor infinito àquilo que amamos; mas, com o passar do tempo, deixamos de sentir o que pensávamos sentir ainda, o fogo desaparece, o prazer da novidade apaga-se, a beleza, que desempenha um papel tão importante no amor, diminui ou deixa de provocar a mesma impressão; a designação de amor permanece, mas já não se trata das mesmas pessoas nem dos mesmos sentimentos; mantêm-se os compromissos por honra, por hábito e por não termos a certeza da nossa própria mudança.
Que pessoas teriam começado a amar-se, se se vissem como se vêem passados uns anos? E que pessoas se poderiam separar se voltassem a ver-se como se viram a primeira vez? O orgulho, que é quase sempre senhor dos nossos gostos, e que nunca está saciado, sentir-se-ia infinitamente lisonjeado por um novo prazer; a constância perderia o seu mérito: deixaria de fazer parte de uma ligação tão agradável, os favores actuais teriam o sabor dos primeiros favores e as recordações não fariam a menor diferença; a inconstância seria desconhecida e as pessoas amar-se-iam sempre com o mesmo prazer, porque teriam sempre os mesmos motivos para se amarem. As transformações da amizade têm mais ou menos as mesmas causas que as transformações do amor: as suas regras são muito semelhantes. Se um tem mais alegria e prazer, a outra deve ser mais serena e mais severa porque nada perdoa; mas o tempo, que muda o humor e os interesses, destrói-os quase do mesmo modo. Os homens são demasiado fracos e demasiado mutáveis para suportar muito tempo o peso da amizade. A Antiguidade deu-nos os exemplos; mas no tempo em que vivemos, pode afirmar-se que é ainda menos impossível encontrar um amor verdadeiro do que uma verdadeira amizade.

La Rochefoucauld, in 'Reflexões'