terça-feira, 23 de dezembro de 2008

A finitude e a liberdade - Françoise Dastur

"trate-se então, para o homem, de ser um morto-vivo, e é mesmo essa capacidade de morte que é a base de sua liberdade, enquanto que esta consiste na possibilidade de negar a determinação natural. É isto que explica que a liberdade esteja essencialmente ligada ao Terror, pois "a única obra e realização da liberdade universal é a morte". Se a ordem humana não advém senão pela negação da liberdade, podemos então afirmar, como Kojève, que "o homem não é simplesmente mortal; é a encarnação da morte; é sua própria morte"; o que implica que o ser do homem "se manifesta como um suicídio postergado".

Françoise Dastur in 'A Morte'

domingo, 14 de dezembro de 2008

14 de dezembro de 2008


A realidade será desvendada, e para isso teremos de nos abrir da forma mais sensível que há. Não é uma obrigação, e somente assim, sem obrigação é que será possível que esse animal arisco, que é a realidade, se mostre... O que eu pretendo com esses trextos é estar mais próximo do que for percebido a respeito desse tema da forma que parecer mais verdadeira, talvez algum dia torne necessário o questionamento dessa posição que tomo como o que julga a proximidade da verdade, mas agora isso é uma proposta a ser explorada, e ainda não questionada, teremos de partir de algum ponto.
A busca da realidade parece passar inicialmente pelo estágio da percepção, isso parece bem óbvio, porque é essa noção do que temos em mãos que usamos como alicerces aos nossos gigantescos movimentos. É estarmos pisando em determinados terrenos que nos colocam em evidência ou na mediocridade. Essa diferenciação manifesta algo que anda com o nosso acontecer, essa mudança mostra que existe de fato um diálogo entre nossos atos e todos os outros, entre nossos atos e tudo o que há, mesmo porque se não evidenciasse qualquer diálogo seríamos tomados até por nós mesmos por loucos, e é pensando assim que na adolescêcia se pensa com tanta ansiedade...
Começo por Vergílio Ferreira dizendo-nos sobre o real como desmistificador, e sigo com Krishnamurti que nos mostra claramente o quão poderosa é nossa mente em relação à realidade, depois lanço Fernando Pessoa com sua sobreposição de paisagens, onde vemos as intermitências da interpretação do mundo. Tem Thomas Carlyle falando sobre o confronto entre erros relativos às realidades adiante. Não chega-se ao fim novamente, sempre há mais o que se dizer... seria muita pretenção dizer algo definitivo...

Sávio

O desmistificador - Vergílio Ferreira


Viajar não é realizar o imaginário que nos excita antes da viagem mas sim exterminá-lo. O deslumbramento é do que se imagina e não do que realizou esse imaginar. Nós pensamos numa terra longínqua e confusamente admitimos que essa distância é sensível quando lá estivermos. Ora quando lá estivermos há o real que desmistifica o imaginário, há o lá, como aqui, num sítio limitado por um horizonte totalmente presente e não tocado da ausência que havia na imaginação. Mesmo os seus elementos característicos que tiver, uma vez realizados, perdem a magia na sua realização. Eis porque precisamos às vezes de rever num mapa a sua localização para de algum modo lhe restaurarmos a distãncia. Tudo se solidifica na concretização do real, tudo se desvanece aí da sua figuração. A grande força do real é a do que está para lá dele, porque toda a realidade é redutora.

Vergílio Ferreira, in 'Pensar'

O pensamento diante de tudo - Ksrishnamurti


O pensamento criou os problemas que nos cercam, e os nossos cérebros são treinados, educados, condicionados para a solução dos problemas. O pensamento criou os problemas, como a divisão entre nacionalidades. O pensamento criou a divisão e o conflito entre as várias estruturas econômicas; o pensamento criou as várias religiões e as divisões entre elas e, por conseguinte, há conflito. O cérebro é treinado para tentar solucionar esses conflitos que o pensamento criou. É essencial que entendamos profundamente a natureza do nosso pensar, a natureza das reações que surgem do nosso pensar. O pensamento domina as nossas vidas, não importa o que façamos; seja qual for a ação que se realize, o pensamento está por trás dessa ação. Em toda atividade, seja ela sensual, intelectual ou biológica, o pensamento opera o tempo todo. Biologicamente, durante séculos, o cérebro foi programado, condicionado - o corpo age do seu próprio modo, a ação de respirar, o batimento do coração, e assim por diante - e, assim, se você é católico, hindu ou budista, você repete esse condicionamento reiteradamente.
O pensamento é um movimento no tempo e no espaço. O pensamento é memória. lembranças das coisas passadas. O pensamento é a atividade do conhecimento, conhecimento que foi acumulado durante milhões de anos e armazenado como memória no cérebro. Se vocês observarem a atividade do nosso pensar, verão que a experiência e o conhecimento constituem a base da nossa vida. O conhecimento nunca está completo: ele caminha sempre com a ignorância. Achamos que o conhecimento solucionará todos os nossos problemas, seja o conhecimento do sacerdote, do guru, do cientista, do filósofo ou do mais recente psiquiatra da moda. Mas nunca questionamos se o conhecimento em si mesmo pode solucionar quaisquer dos nossos problemas - esceto, talvez, os problemas tecnológicos.

Krishnamurti in 'A rede do Pensamento'

As duas paisagens - Fernando Pessoa


1 - Em todo o momento de actividade mental acontece em nós um duplo fenómeno de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência de um estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.
2 - Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
3 - Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que «na ausência da amada o sol não brilha», e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Têm de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]

Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

As implicações - Thomas Carlyle

Todo o confronto é fruto de um mal-entendido; se as partes em disputa se conhecessem uma à outra, o confronto cessaria. Nenhum homem, no fundo, tenciona cometer injustiças; é sempre por uma imagem distorcida e obscura de algo moralmente correcto que ele batalha: uma imagem obscura, difractada, exagerada da forma mais assombrosa pela natural obtusão e egoísmo, uma imagem que se distorce dez vezes mais pelo acirramento da contenda, até tornar-se virtualmente irreconhecível, mas ainda assim a imagem de algo moralmente correcto. Se um homem pudesse admitir perante si próprio que aquilo pelo que luta é errado e contrário à equidade e à lei da razão, admitiria também, por conta disso, que a sua causa ficou condenada e desprovida de esperança; ele não conseguiria continuar a lutar por ela.

Thomas Carlyle, in 'Selected Writings'

sábado, 6 de dezembro de 2008

6 de dezembro de 2008


Como primeira apresentação do tema de hoje, a arte, trago essa frase:
"The only real voyage of discovery consists not in seeking new landscapes, but having new eyes."(Marcel Proust)

Diria que uma boa proposta seja ver a arte como um diálogo entre o íntimo e a realidade, e pra isso cito Kant. Jean Lacoste diz em seu livro 'A filosofia da arte' que "Kant foi o primeiro que tentou superar a oposição entre a generalidade abstrata e o particular, entre o pensamento e a realidade." Quando Kant trata de generalidade abstrata e particular, ele trata de particular como algo na evidência do seu acontecimento, enquanto se faz, nada distante do que é a sua realidade própria. Cuidadosamente ele coloca o particular como a instância separada que nada tem a ver com seus itens a nao ser onde eles se estruturam esteticamente, a estética é o laço que pode ligar as duas coisas. A instância visada é aquela suspensa sobre o acontecer e que vai guiando como um contexto íntimo, solitário, como uma ordem identitária única... O pensamento já não pode de modo algum ser realidade propriamente dita. Seu encontro se dará por um intermediador: a arte, onde conversam os itens íntimos e os itens resgatados...

Quero começar com Agustina Bessa-Luís, que fala de uma forma poética da importância da arte, e verás como é mais convincente quando a coisa é artística, porque por certo já ouvires diversas vezes essas idéias, mas não expressas de forma tão bela. Continuo com Eça para tornar presente na consciência aquilo que a arte tem como fruto. Proust em seguida. A explicação que ele traz é ingenuamente brilhante! Parece-nos comum ao primeiro passo, depois é especial porque não se limita como as teorias, mas abre a experiência para tudo mais. Parece então que a arte é o diálogo dito mais acima, entre o particular e o (quem sabe) universal? A arte é fechada hoje com uma elocubração sobre o ofício de viver de Cesare Pavese.

O objetivo aqui foi demonstrar em passos curtos a experiência da arte através de diferentes olhares. Por isso peguei textos de diferentes artistas e dei a eles uma ordem! Ordem fundamentada na intenção do diálogo humano com o abstrato. Ainda há o que ser dito... Boa leitura.

Sávio

Importância - Agustina Bessa-Luís


A arte é, provavelmente, uma experiência inútil; como a «paixão inútil» em que cristaliza o homem. Mas inútil apenas como tragédia de que a humanidade beneficie; porque a arte é a menos trágica das ocupações, porque isso não envolve uma moral objectiva. Mas se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário. Acreditem que os teares paravam, também, e as fábricas; as gares ficavam estranhamente vazias, as mulheres emudeciam. A arte é, no entanto, uma coisa explosiva. Houve, e há decerto em qualquer lugar da terra, pessoas que se dedicam à experiência inútil que é a arte, pessoas como Virgílio, por exemplo, e que sabem que o seu silêncio pode ser mortal. Se os poetas se calassem subitamente e só ficasse no ar o ruído dos motores, porque até o vento se calava no fundo dos vales, penso que até as guerras se iam extinguindo, sem derrota e sem vitória, com a mansidão das coisas estéreis. O laço da ficção, que gera a expectativa, é mais forte do que todas as realidades acumuláveis. Se ele se quebra, o equilíbrio entre os seres sofre grave prejuízo.

Agustina Bessa-Luís, in 'Dicionário Imperfeito'

Seu fruto - Eça


A arte é tudo porque só ela tem a duração - e tudo o resto é nada! As sociedades, os impérios são varridos da terra, com os seus costumes, as suas glórias, as suas riquezas: e se não passam da memória fugitiva dos homens, se ainda para eles se voltam piedosamente as curiosidades, é porque deles ficou algum vestígio de Arte, a coluna tombada dum palácio, ou quatro versos num pergaminho.

Eça de Queirós, in 'Notas Contemporâneas'

(comentário)
Por esse ponto de vista, a arte seria a forma mais direta de se enxergar uma marcação identitária. Encontramo-nos através dela, e encontramos os outros; em qualquer tempo!

A comunicação - Proust


Somente pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que um outro vê desse universo que não é o mesmo que o nosso e cujas paisagens permaneceriam tão desconhecidas para nós quanto as que podem existir na lua. Graças à arte, em vez de ver um único mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e quantos artistas originais existiem tantos mundos teremos à nossa disposição, mais diferentes uns dos outros do que aqueles que rolam no infinito e, muitos séculos após se ter extinguido o foco do qual emanavam, chamasse ele Rembrandt ou Ver Meer, ainda nos enviam o seu raio especial.

Marcel Proust, in 'O Tempo Reencontrado'

Ofício - Cesare Pavese


A arte de desenvolver os pequenos motivos para nos decidirmos a realizar as grandes acções que nos são necessárias. A arte de nunca nos deixarmos desencorajar pelas reacções dos outros, recordando que o valor de um sentimento é juízo nosso, pois seremos nós a senti-lo e não os que assistem. A arte de mentir a nós próprios, sabendo que estamos a mentir. A arte de encarar as pessoas de frente, incluindo nós próprios, como se fossem personagens de uma novela nossa. A arte de recordar sempre que, não tendo nós qualquer importância e não tendo também os outros qualquer espécie de importância, nós temos mais importância que qualquer outro, simplesmente porque somos nós.
A arte de considerar a mulher como um pedaço de pão: problema de astúcia. A arte de mergulhar fulminante e profundamente na dor, para vir novamente à tona graças a um golpe de rins. A arte de nos substituirmos a qualquer um, e de saber, portanto, que cada pessoa se interessa apenas por si própria. A arte de atribuir qualquer dos nossos gestos a outrem, para verificarmos imediatamente se é sensato.
A arte de viver sem a arte.
A arte de estar só.

Cesare Pavese, in 'O Ofício de Viver'

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

3 de dezembro de 2008


Hoje existe uma urgência em toda a gente. Toda a gente está chegando ao meio do caminho e desanimando por reflexões avulsas. Param e pensam, e por isso regressam às suas casas, com seus inimigos em seu encalço, saqueando suas terras e tomando suas casas, aos poucos, obrigando-lhes ao serviço militar contra a vontade. Talvez o destino pudesse ter sido diferente; se acreditassem mais poderiam ser presenteados com a pedra mística da vitória, com a experiência deliciosa do sucesso. E por isso existem aqueles que dizem: 'fiz isso e podia ter feito muito mais, só que não sabia.' Eu vos digo: Nunca conseguiremos fugir do obstáculo a não ser que desistamos do caminho! Existe o problema da visão, existe o problema dos míopes como eu, que titubeiam por não verem com clareza muito mais a frente. A questão toda vai ser da convicção, da sua verdade. Hoje trato da convicção através de Antoine de Saint-Exupéry, o autor de 'O pequeno príncipe', que constribui com sua visão daquilo que deve ser inquestionável para a razão. A mudança do ponto de vista para mudar a realidade está em voga nos grandes autores. E, para fincar estacas a respeito do que seja em si a convicção antes de ir além com o problema da visão, cito Ortega y Gasset para dizer que o homem está para dar sentido, e a convicção é isso em pureza; um sentido!
Depois vem Vergílio Ferreira com sua visão existencial sobre o fenômeno em voga aqui, desvendando sua presença no coração dos homens. Tenho talvez um interesse a mais aqui, ao que busco outra citação de Vergílio Ferreira, numa frase, em que se bem pensada possamos chegar ao real acontecer dessa convicção: a originalidade em ardência, que nos liberta do envolvimento para estarmos mais lúcidos diante dos fatos! A convicção então, se mostra como forma única de saber da vida... É necessário ter força apesar de tudo! Boa leitura!

Sávio

A linguagem - Saint-Exupéry

Quando as verdades são evidentes e absolutamente contraditórias, o que tens a fazer é mudar de linguagem. A lógica não serve para te ajudar a passares de um andar para o outro. Tu não prevês o recolhimento a partir das pedras. E, se falares do recolhimento com a linguagem das pedras, vais-te abaixo. Precisas de inventar essa palavra nova para dares conta de uma certa arquitectura das tuas pedras. Porque nasceu um ser novo, não divisível, nem explicável; porque explicar é demonstrar. E tu baptiza-lo então com um nome.
Como é que tu havias de raciocinar sobre o recolhimento? Como é que havias de raciocinar sobre o amor? Como é que havias de raciocinar sobre a propriedade? Não se trata de objectos, mas de deuses.

Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"

As estacas - Ortega y Gasset

A vida é primariamente encontrar-se, cada qual, submergido entre as coisas, e enquanto é apenas isso consiste em sentir-se absolutamente perdido. A vida é perdição. Mas por isso mesmo obriga, quer queiramos quer não, a um esforço para se orientar no caos, para se salvar dessa perdição. Este esforço é o conhecimento que extrai do caos um esquema de ordem, um cosmos. Este esquema do universo é o sistema das nossas ideias ou convicções vigentes. Quer queiramos quer não, vivemos com convicções e de convicções. O mais teoreticamente céptico existe apoiando-se num suporte de crenças sobre o que as coisas são. A vida é absoluta convicção. A dúvida intelectual mais extrema é vitalmente uma absoluta convicção de que tudo é duvidoso. E algo ou tudo ser duvidoso não é uma crença num ser menor do que qualquer outra de aspecto mais positivo.

Ortega y Gasset, in 'O Que é a Vida?'

A presença - Vergílio Ferreira

Esse horizonte-limite identifica-se com o que nos estrutura como destino que nos coube e que não tem explicação; esse horizonte-limite que o é em cada época, é a forma diversificada e actuante do que globalmente nós somos e em cada período se particulariza e hierarquiza para a indizível escolha e hierarquização do que em globo nós somos e em cada época se nos harmoniza na totalidade de nós.

Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'

Convicção mirando a originalidade - Vergílio Ferreira

A grande originalidade não é dizer coisas novas mas ser novo diante das coisas velhas.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 3'

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

1º de dezembro de 2008


Hoje, no dia 1º de dezembro de 2008 tenho a dizer isso: a felicidade é complicada! Que forma mais simples de tratar de qualquer assunto que essa? Tratar da felicidade é um ato constantemente complicado, porque na felicidade em si não existem complicações, as complicações estão nos alicerces, na estrutura, na fundamentação desse entendimento. O tratar da felicidade não é um tratar do ato de ser feliz, mas um ato de tratar do como se chegar, do caminho a ser percorrido, mas sem olhar pela estrada, um olhar para o modo de se andar, e no que levar consigo, ou no que não levar... A felicidade traiçoeira que nos leva para os mais diferentes caminhos, e de repente não é mais felicidade, não é felicidade por certo. Ela existe tal qual a beleza que Hegel tenta nos mostrar: ela ilumina, é livre e liberta, e se em algum ponto ela prendeu, se em algum ponto ela falhou, certamente não se tratava de felicidade. A felicidade é um ponto luminoso como o sol, e só irradia, não há o que se esconda de sua forma, e não há quem confunda quando a encontra, poderemos subestimar, mas confundi-la é um trabalho complicado, quase que exigiria esforço para tal. E tratando dessa tal felicidade, começo com Agostinho da Silva dizendo dela como uma condição individual. Em seguida apresento outro aspecto com Stuart Mill: o da compensação da felicidade que por certo é importantíssimo, será ela algo que compense? Existe ainda mais a ser mostrado, e nessa busca de outros aspectos a não serem esquecidos trago a mostra da felicidade em relação às condições sociais, com Luc de Clapiers Vauvenargues. Depois tem Epicteto falando sobre a firmeza da felicidade, e Epicuro falando sobre uma vida simples. A felicidade vai ser uma característica essencial da vida ao final!

Sávio

O aspecto individual - Agostinho da Silva


Nem paz nem felicidade se recebem dos outros nem aos outros se dão. Está-se aqui tão sozinho como no nascer e no morrer; como de um modo geral no viver, em que a única companhia possível é a daquele Deus a um tempo imanente e transcendente e a dos que neles estão, a de seus santos. Felicidade ou paz nós as construímos ou destruímos: aqui o nosso livre-arbítrio supera a fatalidade do mundo físico e do mundo do proceder e toda a experiência que vamos fazendo, negativa mesmo para todos, a podemos transformar em positiva. Para o fazermos, se exige pouco, mas um pouco que é na realidade extremamente difícil e que não atingiremos nunca por nossas próprias forças: exige-se de nós, primacialmente, a humildade; a gratidão pelo que vem, como a de um ginasta pelo seu aparelho de exercício; a firmeza e a serenidade do capitão de navio em sua ponte, sabendo que o ata ao leme não a vontade de um rei, como nos Descobrimentos, mas a vontade de um rei de reis, revelada num servidor de servidores; finalmente, o entregar-se como uma criança a quem sabe o caminho. De qualquer forma, no fundo de tudo, o que há é um acto de decisão individual, um acto de escolha; posso ser, se tal me agradar, infeliz e inquieto.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

Vale a pena - Stuart Mill


Poucas criaturas humanas consentiriam ser transformadas em qualquer dos animais inferiores em troca da promessa do mais pleno acesso aos seus prazeres bestiais; nenhum ser humano inteligente consentiria tornar-se um tolo, nenhuma pessoa instruída, um ignorante, ninguém de sensibilidade e consciência, um ser egoísta e reles, e isso mesmo que eles fossem persuadidos de que o tolo, o beócio ou o infame estavam mais satisfeitos com a sua sorte do que eles estão com a deles. (...) É melhor ser um ser humano insatisfeito que um porco satisfeito; melhor ser um Sócrates insatisfeito que um tolo satisfeito; e, se o tolo ou o porco tem uma opinião distinta, é porque eles só conhecem o seu próprio lado da questão.

John Stuart Mill, in 'Utilitarismo'

E as condições sociais? - Luc de Clapiers Vauvenargues


Um erro sem dúvida bem grosseiro consiste em acreditar que a ociosidade possa tornar os homens mais felizes: a saúde, o vigor da mente, a paz do coração são os frutos tocantes do trabalho. Só uma vida laboriosa pode amortecer as paixões, cujo jugo é tão rigoroso; é ela que mantém nas cabanas o sono, fugitivo dos grandes palácios. A pobreza, contra a qual somos prevenidos, não é tal como pensamos: ela torna os homens mais temperantes, mais laboriosos, mais modestos; ela os mantém na inocência, sem a qual não há repouso nem felicidade real na terra.
O que é que invejamos na condição dos ricos? Eles próprios endividados na abundância pelo luxo e pelo fasto imoderados; extenuados na flor da idade por sua licenciosidade criminosa; consumidos pela ambição e pelo ciúme na medida em que estão mais elevados; vítimas orgulhosas da vaidade e da intemperança; ainda uma vez, povo cego, que lhe podemos invejar?

Consideremos de longe a corte dos príncipes, onde a vaidade humana exibe aquilo que tem de mais especioso: aí encontraremos, mais do que em qualquer outro lugar, a baixeza e a servidão sob a aparência da grandeza e da glória, a indigência sob o nome da fortuna, o opróbrio sob o brilho da posição; aí veremos a natureza sufocada pela ambição, as mães separadas dos seus filhos pelo amor desenfreado do mundo, os filhos esperando com impaciência a morte dos pais, os irmãos opostos aos irmãos, o amigo ao amigo: aí o interesse sórdido e a dissipação em vez dos prazeres; o despeito, o ódio, a vergonha, a vingança e o desespero sob a máscara falsa da felicidade. Onde reina tão imperativamente o vício, nunca é demais repeti-lo, não creiamos que a tranquilidade de espírito e o prazer possam habitar.

Luc de Clapiers Vauvenargues, in 'Ensaios de Moral e de Filosofia'

Sua firmeza - Epicteto


Das coisas que há no mundo, umas estão na nossa mão e outras não. Na nossa mão estão a opinião, a suspeita, o apetite, o aborrecimento, o desejo e, numa palavra, todas as obras que são nossas. Não estão na nossa mão o corpo, a fazenda, nem a honra (reputação), nem o senhorio, nem com efeito nenhuma das que não são obra nossa. As coisas que estão na nossa mão, de sua natureza são livres e senhoras sem impedimento nem embaraço. E as que não estão na nossa mão, de si são fracas, servis, embaraçadas e sujeitas.
Pois olha que, se tiveres por livre o que se sua natureza não o for, e por teu o que em efeito não o é, haverás de embaraçar-te, e lamentar-te, e queixar-te dos deuses e dos homens. Mas se só o que é teu tiveres por tal, e por alheio, como o é, o que não é teu, não haverá nunca quem te faça força; a ninguém acusarás; de ninguém te queixarás; nenhuma coisa farás contra tua vontade; não terás nenhum inimigo; ninguém te fará mal; nem receberás nenhum dano nem perda.

Se vires algum homem muito honrado, ou poderoso, ou por qualquer outra via engrandecido, olha que não te deixes levar por essas aparências e o tenhas por bem-aventurado; porque se a importância, e ser do sossego se puder ser no que está em nossa mão, nem a inveja, nem a emulação terão lugar em nada; e tu mesmo, antes que ser imperador, cônsul, ou senador, tomarias ser livre e senhor de ti mesmo: para o que há um só caminho, que é o desprezo de todas as coisas que não estão na nossa mão.
Traz sempre diante dos olhos a morte, desterros e tudo que se tem por trabalho, e mais que tudo a morte. E com isto nem terás nenhum pensamento baixo, nem desejarás nada com muita força.
Das coisas que servem ao corpo não se há-de tomar mais de quanto convenha para o ânimo; como de comer, beber, vestido, e casa, e serviço: o que não serve senão de vaidade, ou de delícias, deita-o de ti.
Quando alguém te fizer mal, ou disser de ti, lembra-te que cuidava que fazia bem naquilo, e assim lhe pareceu; porque não pode ser que ele siga o teu entendimento, senão o seu. E se ele julga mal das tuas coisas, sua é a perda, pois que vive enganado. Porque se um julga a verdade por mentira, não é por isso ofendida a verdade, senão o que a não conheceu. Com esta consideração sofrerás com ânimo o que disser mal de ti, e a tudo dirás: assim lhe pareceu a ele.
Se a razão, que deve regular todas as coisas, é desregrada, quem a regulará a ela?

Epicteto, in 'Manual'

A vida simples - Epicuro


Devemos estudar os meios de alcançar a felicidade, pois, quando a temos, possuímos tudo e, quando não a temos, fazemos tudo por alcançá-la. Respeita, portanto, e aplica os princípios que continuadamente te inculquei, convencendo-te de que eles são os elementos necessários para bem viver. Pensa primeiro que o deus é um ser imortal e feliz, como o indica a noção comum de divindade, e não lhe atribuas jamais carácter algum oposto à sua imortalidade e à sua beatitude. Habitua-te, em segundo lugar, a pensar que a morte nada é, pois o bem e o mal só existem na sensação. De onde se segue que um conhecimento exacto do facto de a morte nada ser nos permite fruir esta vida mortal, poupando-nos o acréscimo de uma ideia de duração eterna e a pena da imortalidade. Porque não teme a vida quem compreende que não há nada de temível no facto de se não viver mais. É, portanto, tolo quem declara ter medo da morte, não porque seja temível quando chega, mas porque é temível esperar por ela.
É tolice afligirmo-nos com a espera da morte, visto ser ela uma coisa que não faz mal, uma vez chegada. Por conseguinte, o mais pavoroso de todos os males, a morte, nada significa para nós, pois enquanto vivemos a morte não existe. E quando a morte veio, já não existimos nós. A morte não existe, portanto, nem para os vivos nem para os mortos, pois para uns ela não é, e pois os outros não são mais.
(...) Deve, em terceiro lugar, compreender-se que, de entre os desejos, uns são naturais e os outros vãos e que, de entre os naturais, uns são necessários e os outros somente naturais. Finalmente, de entre os desejos necessários, uns são necessários à felicidade, outros à tranquilidade do corpo e outros à própria vida. Uma teoria verídica dos desejos ajustará os desejos e a aversão à saúde do corpo e à ataraxia da alma, pois é esse o escopo de uma vida feliz, e todas as nossas acções têm por fim evitar ao mesmo tempo o sofrimento e a inquietação.

Quando o conseguimos, todas as tempestades da alma se desfazem, não tendo já o ser vivo de dirigir-se para alguma coisa que não possui, nem buscar outra coisa que possa completar a felicidade da alma e do corpo. Porque nós buscamos o prazer somente quando a sua ausência causa sofrimento. Quando não sofremos, não sabemos que fazer do prazer. E por isso dizemos que o prazer é o começo e o fim de uma vida venturosa. O prazer é, na verdade, considerado por nós como o primeiro dos bens naturais, é ele que nos leva a aceitar ou a rejeitar as coisas, a ele vamos parar, tomando a sensibilidade como critério do bem. Ora, pois que o prazer é o primeiro dos bens naturais, segue-se que não aceitamos o primeiro prazer que vem, mas em certos casos desdenhamos numerosos prazeres quando têm por efeito um tormento maior. Por outro lado, há numerosos sofrimentos que reputamos preferíveis aos prazeres, quando nos trazem um maior prazer. Todo o prazer, na medida em que se conforma com a nossa natureza, é portanto um bem, mas nem todo o prazer é entretanto necessariamente apetecível. Do mesmo modo, se toda a dor é um mal, nem toda é necessariamente de evitar. Daqui procede que é por uma sábia consideração das vantagens e dissabores que traz que cada prazer deve ser apreciado. Na verdade, em certos casos, tratamos o bem como um mal e, noutros, o mal como um bem.
Depender apenas de si mesmo é, em nossa opinião, grande bem, mas não se segue, por isso, que devamos sempre contentar-nos com pouco. Simplesmente, quando a abundância nos falece, devemos ser capazes de contentar-nos com pouco, pois estamos persuadidos de que fruem melhor a riqueza aqueles que menos carecem dela e que tudo que é natural se alcança facilmente, enquanto é difícil obter o que o não é. As iguarias mais simples dão tanto prazer como a mesa mais ricamente servida, quando está ausente o tormento que a carência determina, e o pão e a água causam o mais vivo prazer quando os tomamos após longa privação. O hábito da vida simples e modesta é portanto boa maneira de cuidar da saúde e torna, além disso, o homem corajoso para suportar as tarefas que deve necessariamente realizar na vida. Permite-lhe ainda, eventualmente, apreciar melhor a vida opulenta e endurece-o contra os reveses da fortuna. Por conseguinte, quando dizemos que o prazer é o soberano bem, não falamos dos prazeres dos debochados, nem dos gozos sensuais, como pretendem alguns ignorantes que nos combatem e desfiguram o nosso pensamento. Falamos da ausência de sofrimento físico e da ausência da perturbação moral.
Porque não são nem as bebidas e os banquetes contínuos, nem o prazer do trato com as mulheres, nem o júbilo que dão o peixe e a carne com que se enchem as mesas sumptuosas que ocasionam uma vida feliz, mas hábitos racionais e sóbrios, uma razão buscando incessantemente causas legítimas de escolha ou de aversão e rejeitando as opiniões susceptíveis de trazerem à alma a maior perturbação.
O princípio de tudo isto e, ao mesmo tempo, o maior bem é, portanto, a prudência. Devemos reputá-la superior à própria filosofia, pois que ela é a fonte de todas as virtudes que nos ensinam que não se alcança a vida feliz sem a prudência, a honestidade e a justiça e que a prudência, a honestidade e a justiça não podem obter-se sem o prazer.
As virtudes, efectivamente, provêm de uma vida feliz, a qual, por sua vez, é inseparável das virtudes.

Epicuro, in "Carta a Meneceu"

A vida no fundo - Philip Roth


Uma catástrofe genuína, a despeito da ideologia, da política e da história, é sempre, em seu cerne, um anticlímax pessoal. A vida não pode ser acusada de nenhuma deficiência quando se trata de banalizar as pessoas. Temos de tirar o chapéu para a vida, em homenagem às técnicas de que ela dispõe de despojar um homem de toda a sua relevância e esvaziá-lo completamente de seu orgulho.

Philip Roth

sábado, 29 de novembro de 2008

29 de novembro de 2008


Começo hoje, no dia 29 de novembro de 2008, com uma citação de Krishnamurti primeiro pensando sobre o fundamentador do pensamento, e segue com uma de Agostinho da Silva dizendo sobre como sermos mais presentes no mundo, como reconhecer que parte daquilo que vivemos está somente no que trazemos como visão para nós mesmos. Podemos mudar tudo através do manuseio do ponto de vista! E apresento em seguida 'Fernão Capelo Gaivota' de Richard Bach que contém mostras evidentes de uma felicidade que de fato torna as coisas melhores. Boa leitura!

Sávio

Primeiro, fincando estacas. - Krishnamurti


"Quando vocês forem capazes de ver claramente, sem nenhuma distorção, então vocês começarão a indagar a natureza da consciência. Vocês tem que indagar todo o movimento do pensamento, porque o pensamento é o responsável por todo o conteúdo da consciência, tanto das camadas profundas quanto das superfíciais. Se vocês não possuíssem nenhum pensamento, não haveria nenhum medo, nenhum sentido de prazer, nenhum tempo; o pensamento é o responsável pela beleza de uma grande catedral, mas o pensamento também é o responsável por todo o contra-senso que acontece dentro de uma catedral. Todas as realizações dos grandes pintores, poetas, compositores são atividades do pensamento: o compositor, ouvindo interiormente o maravilhoso som, registra-o no papel. Esse é o movimento do pensamento. O pensamento é responsável por todos os deuses do mundo, todos os salvadores, todos os gurus, por toda obediência e devoção; o todo é o resultado do pensamento que procura gratificação e evasão da solidão. O pensamento é o fato comum a toda humanidade. O mais pobre aldeão na Índia pensa como o diretor executivo, como o líder religioso. Este é o terreno sobre o qual estão todos os seres humanos. Não se pode escapar disso."

Krishnamurti in 'A rede do pensamento'

A lucidez como melhoria - Agostinho da Silva


Creio que uma das atitudes fundamentais do homem humano deve ser a de reconhecer em si, numa falta de compreensão ou numa falta de acção, a origem das deficiências que nota no ambiente em que vive; só começamos, na verdade, a melhorar quando deixamos de nos queixar dos outros para nos queixarmos de nós, quando nos resolvemos a fornecer nós mesmos ao mundo o que nos parece faltar-lhe; numa palavra, quando passamos de uma atitude de pessimista censura a uma atitude de criação optimista, optimista não quanto ao estado presente, mas quanto aos resultados futuros. O mesmo terá já dado um grande passo para impedir os ataques, quando aceitar que só puderam existir porque a sua acção não foi o que deveria ter sido; quando se lembrar ainda de que toda a sua coragem se não deve empregar a combater, mas a construir.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

A evidência do otimismo - Richard Bach


"Quando Fernão Gaivota se juntou ao bando na praia era já noite cerrada. Estava tonto e tremendamente cansado. Apesar disso, não resistiu ao prazer de voar num 'loop' para terra e de fazer um 'snap roll' antes de aterrar. 'Quando souberem do triunfo', pensava 'ficarão loucos de alegria. Como vale a pena agora viver! Em vez da monótona labuta de procurar peixe junto dos barcos de pesca, temos uma razão para estar vivos! Podemos subtrair-nos à ignorância, podemos encontrar-nos como criaturas excelentes, inteligentes e hábeis. Podemos ser livres! Podemos aprender a voar!' "

in Fernão Capelo Gaivota de Richard Bach

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

27 de novembro de 2008


Hoje, ao 27 de novembro de 2008, com Baron de Montesquieu, abro mostrando como o belo esconde-se onde não necessariamente parece-nos belo, porque ele tem sua característica de reserva. A condição de belo está para além das fronteiras dos nossos sentidos, está para além daquilo que alcancamos de forma superficial. Ele ao contrário do que se pensa, não prende, mas liberta, e poderemos ver isso se tivermos paciência de enfrentar Hegel na segunda postagem. Mais a frente pensei em Fernando Pessoa, em sua forma de ser quase platônico dando valor para a beleza na fundamentação de sua coisa, naquilo que está sua proposta, naquilo que está seu empenho, seu labor, seu erigir!
E ao final do dia, mesmo querendo preservar mais para o tema, que provavelmente voltará para nossa atenção, jogo-lhes um trecho de O Retrato de Dorian Gray, onde Wilde mostra-nos como de fato se romanceia Hegel e aquilo que alguns chamam de intuição (sera?).

Sávio

Primeiro, onde? - Montesquieu


Por vezes existe nas pessoas ou nas coisas um charme invisível, uma graça natural que não pôde ser definida, a que somos obrigados a chamar o «não sei o quê». Parece-me que é um efeito que deriva principalmente da surpresa. Sensibiliza-nos o facto de uma pessoa nos agradar mais do que deveria inicialmente e somos agradavelmente surpreendidos porque superou os defeitos que os nossos olhos nos mostravam e que o coração já não acredita. Esta é a razão porque as mulheres feias possuem muitas vezes encantos que raramente as mulheres belas possuem, porque uma bela pessoa geralmente faz o contrário daquilo que esperávamos; começa a parecer-nos menos estimável. Depois de nos ter surpreendido positivamente, surpreende-nos negativamente; mas a boa impressão é antiga e a do mal, recente: assim, as pessoas belas raramente despertam grandes paixões, quase sempre restringidas às que possuem encantos, ou seja, dons que não esperaríamos de modo nenhum e que não tinhamos motivos para esperar.
Os encantos encontram-se muito mais no espírito do que no rosto, porque um belo rosto mostra-se logo e não esconde quase nada, mas o espírito apenas se mostra gradualmente, quando quer e do modo que quer; pode esconder-se para surgir de novo e proporcionar essa espécie de surpresa que constitui os encantos.

Baron de Montesquieu, in "Ensaio Sobre o Gosto"

Á liberdade do que é belo - Hegel


I - Chamamos ao belo ideia do belo. Este deve ser concebido como ideia e, ao mesmo tempo, como a ideia sob forma particular; quer dizer, como ideal. O belo, já o dissemos, é a ideia; não a ideia abstracta, anterior à sua manifestação, não realizada, mas a ideia concreta ou realizada, inseparável da forma, como esta o é do principio que nela aparece. Ainda menos devemos ver na ideia uma pura generalidade ou uma colecção de qualidades abstraídas dos objectos reais. A ideia é o fundo, a própria essência de toda a existência, o tipo, unidade real e viva da qual os objectos visíveis não são mais que a realização exterior. Assim, a verdadeira ideia, a ideia concreta, é a que resume a totalidade dos elementos desenvolvidos e manifestados pelo conjunto dos seres. Numa palavra, a ideia é um todo, a harmoniosa unidade deste conjunto universal que se processa eternamente na natureza e no mundo moral ou do espírito.
Só deste modo a ideia é verdade, e verdade total.
Tudo quanto existe, portanto, só é verdadeiro na medida em que é a ideia em estado de existência; pois a ideia é a verdadeira e absoluta realidade. Nada do que aparece como real aos sentidos e à consciência é verdadeiro por ser real, mas por corresponder à ideia, realizar a ideia. De outro modo, o real é uma pura aparência.

II - Agora, se dizemos que a beleza é a ideia, é porque beleza e verdade, num certo aspecto, são idênticas. Há, contudo, uma diferença entre o verdadeiro e o belo.
O verdadeiro é a ideia considerada em si mesma, no seu principio geral e em si e pensada como tal. Não existe, pois, para a razão sob a sua forma exterior e sensível, mas no seu carácter geral e universal. Quando o verdadeiro aparece imediatamente ao espírito na realidade exterior e a ideia se confunde e se identifica com a sua aparência exterior, então a ideia não é somente verdadeira, mas também bela.
Define-se, pois, o belo: a manifestação sensível da ideia (Dassinnlich Scheinen der Idee).
No belo, a forma sensível nada é sem a ideia. Os dois elementos do belo são inseparáveis. Aqui está porque, do ponto de vista da razão lógica ou da abstracção, o belo não pode compreender-se. A razão lógica (Verstand) nunca apreende mais que um dos lados do belo: fica no finito, no exclusivo e falso. O belo, pelo contrário, é em si mesmo infinito e livre.

III - O carácter infinito e livre reconhecia-se quer no sujeito, quer no objecto, e neste do duplo ponto de vista teórico e prático.
1º O objecto, no seu aspecto teórico (especulativo), é livre, visto que não está equilibrado como uma simples existência particular e individual, que, como tal, tem a sua ideia subjectiva (sua íntima essência e a própria razão de ser) fora de si mesma, desenvolve-se sem regra e sem lei, dispersa-se e perde-se na multiplicidade das relações exteriores. Porém, o objecto belo deixa ver a sua própria ideia realizada na sua existência mesma e nessa unidade interior que constitui a sua vida. Por ela, o objecto (...) libertou-se de toda a dependência do que não seja ele mesmo. Perdeu o seu carácter finito e limitado para se transformar em infinito e livre.
Por outro lado, o sujeito, o eu, em sua relação com o objecto, cessa igualmente de ser uma simples abstracção, um sujeito que percepciona e observa fenómenos sensíveis e os generaliza. Chega a ser concreto neste objecto, porque toma nele consciência da unidade da ideia e da sua realidade, da reunião concreta dos elementos que anteriormente estavam separados no eu e no seu objecto.
2º Sob o aspecto prático, como foi demonstrado anteriormente, não existe o desejo na contemplação do belo. O sujeito retira os próprios fins perante o objecto, que considera como existindo por si mesmo, como tendo fim próprio e independente. Por isso, o objecto é livre, visto que não é um meio, mas um instrumento afecto a outra existência. Por seu turno, o sujeito (o espectador) sente-se inteiramente livre porque a distinção entre os seus fins e os meios para satisfazê-los desaparece nele, porque, para ele, a necessidade e o dever de preencher estes fins, realizando-os e objectivando-os, não o retêm na esfera do finito, e, pelo contrário, tem ante si a ideia e o fim realizado de modo perfeito.
Eis aqui porque a contemplação do belo revela algo de liberal; permite ao objecto manter-se na sua existência livre e independente. O sujeito que contempla não sente qualquer necessidade de possui-lo ou de utilizá-lo.
Ainda que livre e fora de todo o alcance exterior, o objecto belo contém todavia, e deve conter em si, a necessidade como relação necessária que mantém a harmonia entre os seus elementos; não aparece, porém, sob a forma da necessidade, porquanto deve dissimular-se sob a aparência de uma disposição acidental onde não penetra qualquer intenção. De outro modo, as diferentes partes perderão a propriedade de serem por si mesmas e para si mesmas. Estão ao serviço da unidade ideal, que as mantém sob a sua dependência.
Em virtude deste carácter livre e infinito que reveste a ideia do belo, como o objecto belo e a contemplação dele, o domínio do belo escapa à esfera das relações fintas e eleva-se à região da ideia e da sua verdade.

Georg Hegel, in ' Do Belo e Suas Formas '

A empenho do que é belo - Fernando Pessoa


A beleza começou por ser uma explicação que a sexualidade deu a si-própria de preferências provavelmentente de origem magnética. Tudo é um jogo de forças, e na obra de arte não temos que procurar «beleza» ou coisa que possa andar no gozo desse nome. Em toda a obra humana, ou não humana, procuramos só duas coisas, força e equilíbrio de força - energia e harmonia.
Perante qualquer obra de qualquer arte - desde a de guardar porcos à de construir sinfonias - pergunto só: quanta força? quanta mais força? quanta violência de tendência? quanta violência reflexa de tendência, violência de tendência sobre si própria, força da força em não se desviar da sua direcção, que é um elemento da sua força?

Fernando Pessoa, in 'Correspondência'

O julgar pelas aparências - Oscar Wilde


A beleza é uma forma de Génio... diria mesmo que é mais sublime do que o Génio por não precisar de qualquer explicação. É um dos grandes factos do mundo, como a luz do sol ou a Primavera, ou o reflexo nas escuras águas dessa concha de prata a que chamamos lua. É inquestionável. Tem um direito de soberania divino. Eleva os seus possuidores à categoria de príncipes. Está a sorrir ? Ah, quando a tiver perdido com certeza que não há-de sorrir... às vezes as pessoas dizem que a Beleza é apenas superficial, e pode bem ser. Mas pelo menos não é tão superficial como o Pensamento. Para mim, a Beleza é a maravilha das maravilhas. Só as pessoas frívolas é que não julgam pelas aparências. O verdadeiro mistério do mundo é o visível e não o invisível...

Oscar Wilde, in 'O Retrato de Dorian Gray'

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

26 de novembro de 2008

Nesse 26 de novembro do ano de 2008 busquei sobre a força, mas em várias coisas que não nela mesma, porque as vezes ela aparece não por si, mas pela evidência dela em nosso comportamento e pensamento. Parti por Descartes, porque como lhe é típico ele pela pelo julgamento, que parece fundamental para a estruturação de qualquer força, que não parece acontecer onde não há vontade. Continuei com dois textos de Sêneca onde ele reflete sobre a técnica, e a força, sobre o homem, e onde nele estará a força senão em músculos, ou os músculos serão outros! Ao final, Kafka caminha sobre os conceitos, trazendo-nos pra mais perto do chão. Chega de abstração por agora! Passemos ao narrar, ao acontecer, ao viver em seguida...

Sávio

A força evidencia-se por si - Kafka


Se caminhasses num terreno plano, se tivesses a boa vontade de caminhar e desses apesar disso passos à rectaguarda, então tratar-se-ia de um caso desesperado; mas como sobes um pendor tão escarpado como tu próprio visto de baixo, os passos para trás só podem ser provocados pela natureza do terreno e não tens que desesperar.

Franz Kafka, in 'Meditações'

O temor combate-se - Sêneca


Não haverá razão para viver, nem termo para as nossas misérias, se fôr mister temer tudo quanto seja temível. Neste ponto, põe em acção a tua prudência; mercê da animosidade de espírito, repele inclusive o temor que te acomete de cara descoberta. Pelo menos, combate uma fraqueza com outra: tempera o receio com a esperança. Por certo que possa ser qualquer um dos riscos que tememos, é ainda mais certo que os nossos temores se apaziguam, quando as nossas esperanças nos enganam.

Estabelece equilíbrio, pois, entre a esperança e o temor; sempre que houver completa incerteza, inclina a balança em teu favor: crê no que te agrada. Mesmo que o temor reuna maior número de sufrágios, inclina-a sempre para o lado da esperança; deixa de afligir o coração, e figura-te, sem cessar, que a maior parte dos mortais, sem ser afectada, sem se ver seriamente ameaçada por mal algum, vive em permanente e confusa agitação. É que nenhum conserva o governo de si mesmo: deixa-se levar pelos impulsos, e não mantém o seu temor dentro de limites razoáveis. Nenhum diz:
- Autoridade vã, espírito vão: ou inventou, ou lho contaram.
Flutuamos ao mínimo sopro. De circunstâncias duvidosas, fazemos certezas que nos aterrorizam. Como a justa medida não é do nosso feitio, instantaneamente uma inquietude se converte em medo.

Séneca, in 'Dos Reveses'

O que somos e o que é a força em nós - Sêneca


Para dizer a verdade, nem sequer é necessário grande esforço se, como disse, começarmos a formar e a corrigir a nossa alma antes que as más tendências cristalizem. Mas mesmo já empedernidas, nem assim eu desespero: com esforço persistente, com cuidados aturados e intensos, todas as más tendências serão vencidas. Podemos aprumar toros de madeira, por muito tortos que estejam; por meio de calor é possível endireitar pranchas curvas e adaptar a sua forma natural às nossas conveniências. Com muito mais facilidade se pode dar forma à alma, essa entidade flexível, mais maleável que qualquer líquido. De facto o que é a alma senão uma espécie de sopro dotado de certa consistência? Ora tu podes observar como o ar é mais elástico que as outras espécies de matéria por ser a mais subtil. Não há, pois, Lucílio, motivo para desesperares de nós pelo facto de a maldade nos dominar, nos possuir mesmo há tanto tempo: ninguém atingiu a sabedoria sem primeiro passar pela insensatez! Todos temos o inimigo dentro de casa: aprender as virtudes equivale a desaprender os vícios. Com tanto maior vontade nos devemos aplicar a emendar-nos: uma vez aprendidos, os bens da sabedoria permacem para sempre na nossa posse. A virtude nunca se esquece.
As plantas crescem com dificuldade num solo inadequado, e por isso será fácil arrancá-las, eliminá-las; mas colocadas num terreno apropriado ganham raízes firmes. A virtude está de acordo com a natureza; os vícios, esses, são como plantas daninhas e nocivas. As virtudes adquiridas não podem ser extirpadas, é com facilidade que as podemos conservar; adquiri-las, contudo, é tarefa árdua, portanto é próprio de um espírito fraco e doente recear experiências desconhecidas. Obriguemos, portanto, esse espírito a dar os primeiros passos. Passada esta fase o tratamento deixa de amargar e torna-se mesmo, enquanto se processa a cura, uma fonte de prazer. Com os remédios do corpo o prazer só chega depois da cura; a filosofia, pelo contrário, é salutar e saborosa simultaneamente.

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'

Força e o Julgamento - Descartes

É verdade que há pouquíssimos homens tão fracos e irresolutos que desejem apenas o que a sua paixão lhes dita. A maioria tem determinados julgamentos, pelos quais pautam uma parte das suas acções. E embora frequentemente esses julgamentos estejam errados, e mesmo se fundamentem em algumas paixões pelas quais a vontade anteriormente se deixou vencer ou seduzir, entretanto, como ela continua a segui-los quando a paixão que os causou está ausente, podemos considerá-los como suas prórpias armas, e pensar que as almas são tanto mais fracas ou mais fortes quanto menos ou mais conseguirem seguir esses julgamentos e resistir às paixões presentes que lhes são contrárias.
Mas há no entanto grande diferença entre as resoluções que procedem de alguma opinião errada e as que se baseiam apenas no conhecimento da verdade; tanto que, se seguirmos estas últimas, estamos seguros de nunca sentirmos pesar nem arrependimento, ao passo que sempre os temos por haver seguido as primeiras, quando descobrimos que estão erradas.

René Descartes, in 'As Paixões da Alma'

terça-feira, 25 de novembro de 2008

25 de novembro de 2008


Em 25 de novembro de 2008, viso a liberdade como tema! Verá primeiro Vergílio Ferreira mostrando-nos quase instintivamente da liberdade, e de como ela é arisca, teremos de ser orgulhosos para tê-la? Sem dúvida fortes! Em seguida ainda ele comenta sobre a condição da liberdade, sua acidez, que ajuda-nos, mas machuca! E logo em seguida vos entrego o humano Chaplin! A liberdade terá de ser ainda comentada!

Sávio

Onde estará a liberdade? - Vergílio Ferreira


Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros.

Diz NÃO à ordem das ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios.

Diz NÃO à cultura com que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia. Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de «elitismo», mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude.

Diz NÃO até ao pão com que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua humilhação.

Diz NÃO à justiça com que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor. Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que tu sabes ser justo.

Diz NÃO à verdade que te pregam, se ela é a mentira com que te ilude o pregador. Porque a verdade tem a face do Sol e não há noite nenhuma que prevaleça enfim contra ela.

Diz NÃO à unidade que te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos.

Diz NÃO a todo o partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenanmo-nos em gado sob o comando de um pastor.

Diz NÃO ao ódio e à violência com que te queiram legitimar uma luta fratricida. Porque a justiça há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue.

Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal.

E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade.


Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 1'

Ser Livre - Vergílio Ferreira


É mais difícil ser livre do que puxar a uma carroça. Isto é tão evidente que receio ofender-vos. Porque puxar uma carroça é ser puxado por ela pela razão de haver ordens para puxar, ou haver carroça para ser puxada. Ou ser mesmo um passatempo passar o tempo puxando. Mas ser livre é inventar a razão de tudo sem haver absolutamente razão nenhuma para nada. É ser senhor total de si quando se é senhoreado. É darmo-nos inteiramente sem nos darmos absolutamente nada. É ser-se o mesmo, sendo-se outro. É ser-se sem se ser. Assim, pois, tudo é complicado outra vez. É mesmo possível que sofra aqui e ali de um pouco de engasgamento. Mas só a estupidez se não engasga, ó meritíssimos, na sua forma de ser quadrúpede, como vós o deveis saber.

Vergílio Ferreira, in 'Nítido Nulo'

O Último Discurso - Chaplin


Sinto muito, mas não pretendo ser um imperador. Não é esse o meu ofício. Não pretendo governar ou conquistar quem quer que seja. Gostaria de ajudar – se possível – judeus, o gentio... negros... brancos.

Todos nós desejamos ajudar uns aos outros. Os seres humanos são assim. Desejamos viver para a felicidade do próximo – não para o seu infortúnio. Por que havemos de odiar e desprezar uns aos outros? Neste mundo há espaço para todos. A terra, que é boa e rica, pode prover a todas as nossas necessidades.

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extraviamos. A cobiça envenenou a alma dos homens... levantou no mundo as muralhas do ódio... e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausurados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, empedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência, precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência e tudo será perdido.

A aviação e o rádio aproximaram-nos muito mais. A própria natureza dessas coisas é um apelo eloqüente à bondade do homem... um apelo à fraternidade universal... à união de todos nós. Neste mesmo instante a minha voz chega a milhares de pessoas pelo mundo afora... milhões de desesperados, homens, mulheres, criancinhas... vítimas de um sistema que tortura seres humanos e encarcera inocentes. Aos que me podem ouvir eu digo: “Não desespereis! A desgraça que tem caído sobre nós não é mais do que o produto da cobiça em agonia... da amargura de homens que temem o avanço do progresso humano. Os homens que odeiam desaparecerão, os ditadores sucumbem e o poder que do povo arrebataram há de retornar ao povo. E assim, enquanto morrem homens, a liberdade nunca perecerá.

Soldados! Não vos entregueis a esses brutais... que vos desprezam... que vos escravizam... que arregimentam as vossas vidas... que ditam os vossos atos, as vossas idéias e os vossos sentimentos! Que vos fazem marchar no mesmo passo, que vos submetem a uma alimentação regrada, que vos tratam como gado humano e que vos utilizam como bucha de canhão! Não sois máquina! Homens é que sois! E com o amor da humanidade em vossas almas! Não odieis! Só odeiam os que não se fazem amar... os que não se fazem amar e os inumanos!

Soldados! Não batalheis pela escravidão! Lutai pela liberdade! No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou grupo de homens, ms dos homens todos! Está em vós! Vós, o povo, tendes o poder – o poder de criar máquinas. O poder de criar felicidade! Vós, o povo, tendes o poder de tornar esta vida livre e bela... de faze-la uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – usemos desse poder, unamo-nos todos nós. Lutemos por um mundo novo... um mundo bom que a todos assegure o ensejo de trabalho, que dê futuro à mocidade e segurança à velhice.

É pela promessa de tais coisas que desalmados têm subido ao poder. Mas, só mistificam! Não cumprem o que prometem. Jamais o cumprirão! Os ditadores liberam-se, porém escravizam o povo. Lutemos agora para libertar o mundo, abater as fronteiras nacionais, dar fim à ganância, ao ódio e à prepotência. Lutemos por um mundo de razão, um mundo em que a ciência e o progresso conduzam à ventura de todos nós. Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!

Hannah, estás me ouvindo? Onde te encontrares, levanta os olhos! Vês, Hannah? O sol vai rompendo as nuvens que se dispersam! Estamos saindo da treva para a luz! Vamos entrando num mundo novo – um mundo melhor, em que os homens estarão acima da cobiça, do ódio e da brutalidade. Ergue os olhos, Hannah! A alma do homem ganhou asas e afinal começa a voar. Voa para o arco-íris, para a luz da esperança. Ergue os olhos, Hannah! Ergue os olhos!

Chaplin in "O Grande Ditador”

segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Estabelecer Princípios - Schnitzler


Hypomnemata, palavra grega para nota, aqui abordada como Sêneca a empregara, como o entendimento a ser recordado sempre, para a construção de si. Hoje, em 25/11/2008, começo o blog com duas citações que comentam sobre princípios, onde Séneca expressa-os em relação ao caráter, e Schnitzler expressa-os em relação à atitude!
Boa leitura para os quase nenhum que se aventuram!

"Existem pessoas que têm propensão para modelar a sua vida de acordo com princípios definidos, - e outras que gostam de forjar os seus princípios de acordo com os acasos do seu destino pessoal. Em ambos os casos trata-se apenas de experimentar tornar a vida o mais cómoda possível, quando o importante é, apesar de tudo, enfrentar cada acontecimento, desembaraçado de qualquer preconceito e prevenção, mesmo correndo o risco de um constante extravio."

(Arthur Schnitzler, in 'Observação do Homem')

A Importância dos Princípios - Séneca

Entre os homens, alguns há que possuem naturalmente um excelente carácter e que assimilam sem necessidade de longa instrução os princípios tradicionais, que abraçam a via da moralidade desde o primeiro momento em que dela ouvem falar; do meio destes é que surgem aqueles génios que concitam em si toda a gama de virtudes, que produzem eles mesmos virtudes. Mas aos outros, àqueles que têm o espírito embotado, obtuso ou dominado por tradições erróneas, a esses há que raspar a ferrugem que têm na alma. Mais ainda: se transmitirmos os preceitos básicos da filosofia aos primeiros, rapidamente eles atingirão o mais alto nível, pois estão naturalmente inclinados ao bem; se o fizermos aos outros, os de natureza mais fraca, ajudá-los-emos a libertarem-se das suas convicções erradas. Por aqui podes ver como são necessários os princípios básicos. Temos instintos em nós que nos fazem indolentes ante certas coisas, e atrevidos perante outras; ora, nem este atrevimento nem aquela indolência podem ser eliminados se primeiro não removermos as respectivas causas, ou seja, a admiração infundada ou o receio infundado.

Enquanto tivermos em nós esses instintos, bem poderás dizer: "estes são os teus deveres para com teu pai, ou para com os filhos, ou para com os amigos, ou para com os teus hóspedes" — o espírito de lucro será sempre uma causa de hesitações. Um homem bem pode saber que se deve lutar pela pátria, mas o medo convencê-lo-á do contrário; pode saber que se deve suar em benefício dos amigos até á última gota de suor, mas o comodismo impedi-lo-á de o fazer; pode saber que a maior ofensa para uma mulher casada é o marido ter uma amante, mas a sensualidade impeli-lo-á a arranjar uma. Por conseguinte, de nada servirá dar conselhos práticos se primeiro se não removem os obstáculos a que esses conselhos sejam seguidos, do mesmo modo que de nada serve pormos à vista e ao alcance de alguém armas que não poderá usar porque lhe não desamarramos primeiro as mãos! Para que a alma possa pôr em prática os conselhos que lhe damos, devemos primeiro desamarrá-la! Imaginemos alguém que procede como deve ser: pode não proceder assim com frequência, pode não proceder assim com constância, porque não sabe por que motivo procede como deve ser. Às vezes, por mero acaso ou em virtude da prática, podemos desenhar linhas rectas, mas não temos à mão uma régua que permita verificar se são realmente rectas as linhas que julgamos tais. Um homem que seja bom por acaso não dá garantias de que será sempre bom!

Séneca, in 'Cartas a Lucílio'