terça-feira, 10 de março de 2009

10 de março de 2009

Minha proposta desse mês é a originalidade, mas não vou falar sobre a originalidade, escrevo pra tentar entender o ato de se escrever. A originalidade do criador. E como primeira idéia para expressar isso, que é como passar adiante alguma experiência, penso em representar essa originalidade através de textos de Vergílio Ferreira, um dos grandes autores de nossa era. E pego um a mais, o Eugênio de Andrade, fantástico!

O que proponho é entender a originalidade na criação em um desenrolar do ato, por isso um literato, e por isso seus textos auto-analíticos. Olhando de perto antes de mais nada o escrever, será observado aquilo que é considerável, levantando para questão o gosto, ousando dizer sobre o bom e o mau gosto. Dizer que escrever mal não é um simples desleixo, é um estado de espírito para o qual muitos se inclinam quase sempre. E para isso se inclina para fora de si, para tentar imitar ou copiar, tentar levar adiante algo que não vem do próprio ímpeto [Ímpeto: (Do latim impetu) Manifestação súbita e violenta; Movimento arrebatado; Pressa irrefletida; Impulso; Ataque; Precipitação; Fúria; Furor...]. Expressar o ato poético nesse momento me pareceu muito conveniente, talvez perspicaz.

A motivação da criatividade então, por tudo isso, não me parece ser uma inspiração súbita, a iluminação do nada. Ela é, através dessas óticas, um labor, um esforço continuado e suado, convicto, e por isso valoroso, atrás daquilo que se aprecia de forma até inocente. É um hábito às vezes empurrado, às vezes necessário. E nesse hábito foi descobrir-se o homem, o sujeito, o aventureiro. O ato de descobrir o escrever através da sua própria formulação. E porque se escreve? Porque os não-grandes sacrifícios podem perigar ao nada; só erigindo, no caso escrevendo, alguma coisa vale por nós, em nós, que somos nós mesmos atuando. É conseguirmos encontrarmo-nos, é através da arte, escrever sobre o que todos escrevem, ou do que já foi pensado, mas ainda assim ser inaugural e por isso ter encontrado aquilo que foi você desperto em meio ao sono da humanidade. E os despertos, ainda que mortos, vigoram dialogando entre si, entre os vivos, que os lêem, e assim intrigam, assim inauguram algo todos os dias ainda.
obs.:e para consideração dessa importância, rever a citação 6/12/2008, de Agustina Bessa-Luís, a que trata da importância.

Sávio

O bem escrito - Vergílio Ferreira

Que ridículo e mesmo estúpido dizer-se de um livro que está bem escrito. Não é «bem escrito» que está. Está é sentido originalmente, original nas observações, inteligente na reflexão. É por isso que não se pode imitar. Pode-se é ser original de outra maneira. Há realmente livros que são apenas «bem escritos». São os livros banais, com palavras trabalhadas ao torno, frases que se pretendem «despojadas», reduzidas ao «essencial», e cruas. Mas como o que nelas está não representa um sentir originário, nem uma observação imprevista, nem uma reflexão que nos surpreenda pela justeza e profundidade, o que delas resulta é uma construção pretensiosa, estéril e quase sempre irritante. Decerto um romance (como a poesia segundo Mallarmé e como creio já ter dito), faz-se com palavras. Pois com que é que havia de fazer-se? Mas antes disso faz-se com o impulso animador a essas palavras e que assim não passa bem por elas mas por entre elas, fazendo delas apenas um apoio para passar além, como o som passa pelas cordas mas existe por entre elas e é nesse som o indizível que nos emociona. O que nos fica de um livro «bem escrito» é essa emoção que já não lembra as palavras e vive por si.

Eis porque tal livro é inimitável e apenas poderá repetir-se, ou seja plagiar-se. Imitar verdadeiramente esse livro é recompor uma emoção afim e inventar outras palavras que traduzam esse sentir, ou seja que lhe sirvam de pretexto ou estratagema para que esse sentir (e pensar/sentir) se realize como a música nas cordas de um instrumento. O escritor medíocre imagina que todo o seu trabalho deve incindir no trabalhar uma frase. Ora não é a frase que tem de se trabalhar: é aquilo que há-de passar por ela. Os autores célebres que trabalharam a frase, na realidade trabalharam apenas aquilo que haviam de exprimir; testaram na frase a realização de uma expressão. O escritor medíocre dá como já adquirido o que haveria a dizer e todo o seu esforço é secar o período, burilar ou envernizar o vocábulo. E no fim de contas, este é que «escreve bem». Mas quem assim escreve bem, escreve bastante mal. Não digo rasamente que o «conteúdo» preceda a sua «expressão». Mas o que preexiste à expressão não é um puro nada. Exprimir é operar e concretizar esse algo. Mas esse algo existe. Escrever bem, como se diz, é realizar pela escrita um «bem» que aí se revela mas que está antes e depois disso em que se revela. Escreve-se bem com o espírito e a sensibilidade - não com um dicionário. Embora seja no dicionário que está toda a obra-prima. Como na pedra está toda a melhor escultura.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 4'

Vamos conhecer - Vergílio Ferreira

Vê se não insistes muito em perguntar porquê ou para quê, se não queres ficar paralítico. Porque a maior grandeza da vida tem o valor nela própria e não fora dela. Não se pode justificar a vida senão nela. Ou a luz. Ou a fraternidade humana. Ou a justiça. E o mais assim. E é o que é indiscutível que pode fundar um comportamento e uma razão de se estar vivo.
É fácil ainda inventar ou ter razões para se atentar contra o que é indiscutível. Porque se é indiscutível, não se pode discutir. E se se discute, o valor deixa de existir. Toda a cultura ou civilização assenta em pressupostos que não exigem uma demonstração e permanecem assim no intocável que é seu. Eis que no nosso tempo, como em nenhum outro, o fundamental para a vida se determina pela negação. A arte foi como sempre o grande arauto da nossa terra queimada. Negar. Destruir. Porque tudo se contamina da possibilidade de negação. Das artes e as letras ao comportamento social.
E curiosamente a mais manifesta negação é a que se refere ao tabu sexual. E o que mais se destaca aí é o uso a frio das maiores obscenidades. E o que mais se evidencia nisso é a redução do acto amoroso ao que nele é animal. Tudo o que se refere à nossa animalidade tem um duplo vocabulário segundo exprime aí elevação e baixeza. Utilizar friamente a obscenidade é reduzir o mais alto ao mais baixo, para que o bode o cão ou o cavalo afirmem a sua razão de ser contra a razão de ser humano. O nosso tempo exige não ter tabus. É a forma de exigir que se seja cavalo ou bode.

Vergílio Ferreira, in "Escrever"

O ato poético - Eugénio de Andrade

O acto poético é o empenho total do ser para a sua revelação. Este fogo do conhecimento, que é também fogo de amor, em que o poeta se exalta e consome, é a sua moral. E não há outra. Nesse mergulho do homem nas suas águas mais silenciadas, o que vem à tona é tanto uma singularidade como uma pluralidade. Mas, curiosamente, o espírito humano atenta mais facilmente nas diferenças do que nas semelhanças, esquecendo-se, e é Goethe quem o lembra, que o particular e o universal coincidem, e assim a palavra do poeta, tão fiel ao homem, acaba por ser palavra de escândalo no seio do próprio homem. Na verdade, ele nega onde outros afirmam, desoculta o que outros escondem, ousa amar o que outros nem sequer são capazes de imaginar. Palavra de aflição mesmo quando luminosa, de desejo apesar de serena, rumorosa até quando nos diz o silêncio, pois esse ser sedento de ser, que é o poeta, tem a nostalgia da unidade, e o que procura é uma reconciliação, uma suprema harmonia entre luz e sombra, presença e ausência, plenitude e carência.

Eugénio de Andrade, in 'Rosto Precário'

Escreve e não perguntes - Vergílio Ferreira

Senta-te diante da folha de papel e escreve. Escrever o quê? Não perguntes. Os crentes têm as suas horas de orar, mesmo não estando inclinados para isso. Concentram-se, fazem um esforço de contensão beata e lá conseguem. Esperam a graça e às vezes ela vem. Escrever é orar sem um deus para a oração. Porque o poder da divindade não passa apenas pela crença e é aí apenas uma modalidade de a fazer existir. Ela existe para os que não crêem, como expressão do sagrado sem divindade que a preencha. Como é que outros escrevem em agnosticismo da sensibilidade? Decerto eles o fazem sendo crentes como os crentes pelo acto extremo de o manifestarem. Eles captarão assim o poder da transfiguração e do incognoscível na execução fria do acto em que isso deveria ser. Escreve e não perguntes. Escreve para te doeres disso, de não saberes. E já houve resposta bastante.

Vergílio Ferreira, in "Pensar"

Trazendo pra si - Vergílio Ferreira

Justamente porque a literatura se funda genericamente na ideia, ela é a mais ameaçada das formas de arte, para lá do que sabemos da sua aparente maior duração. Ou portanto a mais equívoca. Ou a mais mortal. Porque nas outras artes, a ideia é a nossa tradução do seu silêncio, o modo de uma emoção ser dita ou seja transaccionável, um modo irresistível de explicar, uma forma afinal de dominarmos o que nos domina, porque nomear é reduzir ao nosso poder aquilo que se nomeia. Mas a forma de arte não discursiva permanece intacta ao nosso nomear. A literatura, porém, é nesse nomear que começa. Na relação da emoção com a palavra que a diz, o seu movimento é inverso do que acontece com a música ou a pintura. A emoção de um quadro resolve-se numa palavra terminal. Mas a literatura parte-se dessa palavra para se chegar á emoção. Assim pois a «ideia» é o seu elemento nuclear, ainda que uma associação imprevisível de palavras a disfarce.

Vergílio Ferreira, in 'Arte Tempo'

Os intrigantes itens - Ana Hatherly

Os tentáculos da escrita. A escrita é um polvo, um molusco versátil. Tem infinitos recursos. Escapa sempre. Abstractiza-se. Disfarça-se, adensa-se, adelgaça-se, esconde-se. Impele-se rápida. Compreende tudo: ascese, consolo íntimo, entrega; fluxos, refluxos, invasões, esvaziamentos, obstinação feroz. O seu rigor é místico. É uma infinita demanda. Perscruta o inaudito. Sideral Alice atravessa todas as portas, todos os espelhos. Cruza, descobre, inventa universos. A escrita é um fragmento do espanto, já alguém o disse.

Ana Hatherly, in 'Tisanas'