sábado, 24 de janeiro de 2009

A ação - Vergílio Ferreira


E depois, meu amigo, enquanto temos um instrumento na mão, não sabemos que temos um instrumento na mão... Todo o gesto, enquanto tal, enquanto se executa, limita-se em si mesmo, esquece a sua origem: toda a acção trai a força que a gerou, porque ela é em si própria um princípio e um fim.

Vergílio Ferreira, in 'Carta ao Futuro'

domingo, 11 de janeiro de 2009

11 de janeiro de 2009

Hoje, no dia 11 de janeiro, depois de muito que passei sem escrever, posto sobre a morte. Sem reflexões parciais, pretendo hoje ser breve, quero ser objetivo, rápido e eficaz, conseguirei? Começo com Epicuro, porque traz uma boa reflexão sobre a morte, como ela nos aflige e como as pessoas dadas como fortes e de bem com a vida a encaram. Depois um toque de lucidez quanto ao momento da morte, quanto ao momento do deixar para trás, quanto a liberdade da morte, entendido por Camus. Temos então uma elocubração sobre como tudo converge para a nossa morte, ela eh o passo decisivo, e sobre isso tem Vergilio Ferreira a discursar. E o vislumbre da finitude com Wittgenstein, sendo sucedido então pelo lugar de se apresentar Françoise Dastur em sua mostra de morte, como o fenômeno de finitude, como a cessação de algo para que se apresente um outra coisa, para que haja liberdade. O processo de desapego dos fenômenos, esse sim parece um bom entendimento do que venha a ser a morte. Ela lança em terra o anterior, e inaugura mais adiante um novo, como duas coisas que não convivem, como a própria morte e vida, a independência absoluta, uma não convive com a outra a não ser no metafórico de uma delas. Então largue de lado o pré-concebido, mate nesse breve instante de leitura o anterior, porque existe algo novo pra entender aqui!

Sávio

Tranquilize-se através do entendimento - Epicuro

Habitua-te a pensar que a morte não é nada para nós, pois que o bem e o mal só existem na sensação. Donde se segue que um conhecimento exacto do facto de a morte não ser nada para nós permite-nos usufruir esta vida mortal, evitando que lhe atribuamos uma idéia de duração eterna e poupando-nos o pesar da imortalidade. Pois nada há de temível na vida para quem compreendeu nada haver de temível no facto de não viver. É pois, tolo quem afirma temer a morte, não porque sua vinda seja temível, mas porque é temível esperá-la.
Tolice afligir-se com a espera da morte, pois trata-se de algo que, uma vez vindo, não causa mal. Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais.

Não há morte, então, nem para os vivos nem para os mortos, porquanto para uns não existe, e os outros não existem mais. Mas o vulgo, ou a teme como o pior dos males, ou a deseja como termo para os males da vida. O sábio não teme a morte, a vida não lhe é nenhum fardo, nem ele crê que seja um mal não mais existir. Assim como não é a abundância dos manjares, mas a sua qualidade, que nos delicia, assim também não é a longa duração da vida, mas seu encanto, que nos apraz. Quanto aos que aconselham os jovens a viverem bem, e os velhos a bem morrerem, são uns ingénuos, não apenas porque a vida tem encanto mesmo para os velhos, como porque o cuidado de viver bem e o de bem morrer constituem um único e mesmo cuidado.

Epicuro, in "A Conduta na Vida"

A primeira liberdade, e o equívoco - Albert Camus

Não amaremos talvez insuficientemente a vida? Já notou que só a morte desperta os nossos sentimentos? Como amamos os amigos que acabam de deixar-nos, não acha?! Como admiramos os nossos mestres que já não falam, com a boca cheia de terra! A homenagem surge, então, muito naturalmente, essa mesma homenagem que talvez eles tivessem esperado de nós, durante a vida inteira. Mas sabe porque nós somos sempre mais justos e mais generosos para com os mortos? A razão é simples! Para com eles, já não há deveres.

É assim o homem, caro senhor, tem duas faces. Não pode amar sem se amar. Observe os seus vizinhos, se calha de haver um falecimento no prédio. Dormiam na sua vida monótona e eis que, por exemplo, morre o porteiro. Despertam imediatamente, atarefam-se, enchem-se de compaixão. Um morto no prelo, e o espectáculo começa, finalmente. Têm necessidade de tragédia, que é que o senhor quer?, é a sua pequena transcendência, é o seu aperitivo.
É preciso que algo aconteça, eis a explicação da maior parte dos compromissos humanos. É preciso que algo aconteça, mesmo a servidão sem amor, mesmo a guerra ou a morte. Vivam, pois, os enterros!

Albert Camus, in 'A Queda'

O passo decisivo - Vergílio Ferreira

O que mais me intriga e dói na nossa morte, como vemos na dos outros, é que nada se perturba com ela na vida normal do mundo. Mesmo que sejas uma personagem histórica, tudo entra de novo na rotina como se nem tivesses existido. O que mais podem fazer-te é tomar nota do acontecimento e recomeçar. Quando morre um teu amigo ou conhecido, a vida continua natural como se quem existisse para morrer fosses só tu. Porque tudo converge para ti, em quem tudo existe, e assim te inquieta a certeza de que o universo morrerá contigo. Mas não morre. Repara no que acontece com a morte dos outros e ficas a saber que o universo se está nas tintas para que morras ou não. E isso é que é incompreensível - morrer tudo com a tua morte e tudo ficar perfeitamente na mesma. Tudo isto tem significado para o teu presente. Mas recua duzentos anos e verás que nada disto tem já significado.

Vergílio Ferreira, in 'Escrever'

Vislumbre da finitude - Ludwig Wittgenstein


A morte não é um acontecimento da vida. A morte não pode ser vivida. Caso se compreenda por eternidade não uma duração temporal infinita, mas a intemporalidade, quem vive no presente é quem vive eternamente. A nossa vida é tanto mais sem fim quanto mais o nosso campo de visão não tem limites.

Ludwig Wittgenstein, in 'Tratado Lógico-Filosófico'