terça-feira, 23 de dezembro de 2008

A finitude e a liberdade - Françoise Dastur

"trate-se então, para o homem, de ser um morto-vivo, e é mesmo essa capacidade de morte que é a base de sua liberdade, enquanto que esta consiste na possibilidade de negar a determinação natural. É isto que explica que a liberdade esteja essencialmente ligada ao Terror, pois "a única obra e realização da liberdade universal é a morte". Se a ordem humana não advém senão pela negação da liberdade, podemos então afirmar, como Kojève, que "o homem não é simplesmente mortal; é a encarnação da morte; é sua própria morte"; o que implica que o ser do homem "se manifesta como um suicídio postergado".

Françoise Dastur in 'A Morte'

domingo, 14 de dezembro de 2008

14 de dezembro de 2008


A realidade será desvendada, e para isso teremos de nos abrir da forma mais sensível que há. Não é uma obrigação, e somente assim, sem obrigação é que será possível que esse animal arisco, que é a realidade, se mostre... O que eu pretendo com esses trextos é estar mais próximo do que for percebido a respeito desse tema da forma que parecer mais verdadeira, talvez algum dia torne necessário o questionamento dessa posição que tomo como o que julga a proximidade da verdade, mas agora isso é uma proposta a ser explorada, e ainda não questionada, teremos de partir de algum ponto.
A busca da realidade parece passar inicialmente pelo estágio da percepção, isso parece bem óbvio, porque é essa noção do que temos em mãos que usamos como alicerces aos nossos gigantescos movimentos. É estarmos pisando em determinados terrenos que nos colocam em evidência ou na mediocridade. Essa diferenciação manifesta algo que anda com o nosso acontecer, essa mudança mostra que existe de fato um diálogo entre nossos atos e todos os outros, entre nossos atos e tudo o que há, mesmo porque se não evidenciasse qualquer diálogo seríamos tomados até por nós mesmos por loucos, e é pensando assim que na adolescêcia se pensa com tanta ansiedade...
Começo por Vergílio Ferreira dizendo-nos sobre o real como desmistificador, e sigo com Krishnamurti que nos mostra claramente o quão poderosa é nossa mente em relação à realidade, depois lanço Fernando Pessoa com sua sobreposição de paisagens, onde vemos as intermitências da interpretação do mundo. Tem Thomas Carlyle falando sobre o confronto entre erros relativos às realidades adiante. Não chega-se ao fim novamente, sempre há mais o que se dizer... seria muita pretenção dizer algo definitivo...

Sávio

O desmistificador - Vergílio Ferreira


Viajar não é realizar o imaginário que nos excita antes da viagem mas sim exterminá-lo. O deslumbramento é do que se imagina e não do que realizou esse imaginar. Nós pensamos numa terra longínqua e confusamente admitimos que essa distância é sensível quando lá estivermos. Ora quando lá estivermos há o real que desmistifica o imaginário, há o lá, como aqui, num sítio limitado por um horizonte totalmente presente e não tocado da ausência que havia na imaginação. Mesmo os seus elementos característicos que tiver, uma vez realizados, perdem a magia na sua realização. Eis porque precisamos às vezes de rever num mapa a sua localização para de algum modo lhe restaurarmos a distãncia. Tudo se solidifica na concretização do real, tudo se desvanece aí da sua figuração. A grande força do real é a do que está para lá dele, porque toda a realidade é redutora.

Vergílio Ferreira, in 'Pensar'

O pensamento diante de tudo - Ksrishnamurti


O pensamento criou os problemas que nos cercam, e os nossos cérebros são treinados, educados, condicionados para a solução dos problemas. O pensamento criou os problemas, como a divisão entre nacionalidades. O pensamento criou a divisão e o conflito entre as várias estruturas econômicas; o pensamento criou as várias religiões e as divisões entre elas e, por conseguinte, há conflito. O cérebro é treinado para tentar solucionar esses conflitos que o pensamento criou. É essencial que entendamos profundamente a natureza do nosso pensar, a natureza das reações que surgem do nosso pensar. O pensamento domina as nossas vidas, não importa o que façamos; seja qual for a ação que se realize, o pensamento está por trás dessa ação. Em toda atividade, seja ela sensual, intelectual ou biológica, o pensamento opera o tempo todo. Biologicamente, durante séculos, o cérebro foi programado, condicionado - o corpo age do seu próprio modo, a ação de respirar, o batimento do coração, e assim por diante - e, assim, se você é católico, hindu ou budista, você repete esse condicionamento reiteradamente.
O pensamento é um movimento no tempo e no espaço. O pensamento é memória. lembranças das coisas passadas. O pensamento é a atividade do conhecimento, conhecimento que foi acumulado durante milhões de anos e armazenado como memória no cérebro. Se vocês observarem a atividade do nosso pensar, verão que a experiência e o conhecimento constituem a base da nossa vida. O conhecimento nunca está completo: ele caminha sempre com a ignorância. Achamos que o conhecimento solucionará todos os nossos problemas, seja o conhecimento do sacerdote, do guru, do cientista, do filósofo ou do mais recente psiquiatra da moda. Mas nunca questionamos se o conhecimento em si mesmo pode solucionar quaisquer dos nossos problemas - esceto, talvez, os problemas tecnológicos.

Krishnamurti in 'A rede do Pensamento'

As duas paisagens - Fernando Pessoa


1 - Em todo o momento de actividade mental acontece em nós um duplo fenómeno de percepção: ao mesmo tempo que tempos consciência de um estado de alma, temos diante de nós, impressionando-nos os sentidos que estão virados para o exterior, uma paisagem qualquer, entendendo por paisagem, para conveniência de frases, tudo o que forma o mundo exterior num determinado momento da nossa percepção.
2 - Todo o estado de alma é uma passagem. Isto é, todo o estado de alma é não só representável por uma paisagem, mas verdadeiramente uma paisagem. Há em nós um espaço interior onde a matéria da nossa vida física se agita. Assim uma tristeza é um lago morto dentro de nós, uma alegria um dia de sol no nosso espírito. E - mesmo que se não queira admitir que todo o estado de alma é uma paisagem - pode ao menos admitir-se que todo o estado de alma se pode representar por uma paisagem. Se eu disser "Há sol nos meus pensamentos", ninguém compreenderá que os meus pensamentos são tristes.
3 - Assim, tendo nós, ao mesmo tempo, consciência do exterior e do nosso espírito, e sendo o nosso espírito uma paisagem, tempos ao mesmo tempo consciência de duas paisagens. Ora, essas paisagens fundem-se, interpenetram-se, de modo que o nosso estado de alma, seja ele qual for, sofre um pouco da paisagem que estamos vendo - num dia de sol uma alma triste não pode estar tão triste como num dia de chuva - e, também, a paisagem exterior sofre do nosso estado de alma - é de todos os tempos dizer-se, sobretudo em verso, coisas como que «na ausência da amada o sol não brilha», e outras coisas assim. De maneira que a arte que queira representar bem a realidade terá de a dar através duma representação simultânea da paisagem interior e da paisagem exterior. Resulta que terá de tentar dar uma intersecção de duas paisagens. Têm de ser duas paisagens, mas pode ser - não se querendo admitir que um estado de alma é uma paisagem - que se queira simplesmente interseccionar um estado de alma (puro e simples sentimento) com a paisagem exterior. [...]

Fernando Pessoa, in 'Cancioneiro'

As implicações - Thomas Carlyle

Todo o confronto é fruto de um mal-entendido; se as partes em disputa se conhecessem uma à outra, o confronto cessaria. Nenhum homem, no fundo, tenciona cometer injustiças; é sempre por uma imagem distorcida e obscura de algo moralmente correcto que ele batalha: uma imagem obscura, difractada, exagerada da forma mais assombrosa pela natural obtusão e egoísmo, uma imagem que se distorce dez vezes mais pelo acirramento da contenda, até tornar-se virtualmente irreconhecível, mas ainda assim a imagem de algo moralmente correcto. Se um homem pudesse admitir perante si próprio que aquilo pelo que luta é errado e contrário à equidade e à lei da razão, admitiria também, por conta disso, que a sua causa ficou condenada e desprovida de esperança; ele não conseguiria continuar a lutar por ela.

Thomas Carlyle, in 'Selected Writings'

sábado, 6 de dezembro de 2008

6 de dezembro de 2008


Como primeira apresentação do tema de hoje, a arte, trago essa frase:
"The only real voyage of discovery consists not in seeking new landscapes, but having new eyes."(Marcel Proust)

Diria que uma boa proposta seja ver a arte como um diálogo entre o íntimo e a realidade, e pra isso cito Kant. Jean Lacoste diz em seu livro 'A filosofia da arte' que "Kant foi o primeiro que tentou superar a oposição entre a generalidade abstrata e o particular, entre o pensamento e a realidade." Quando Kant trata de generalidade abstrata e particular, ele trata de particular como algo na evidência do seu acontecimento, enquanto se faz, nada distante do que é a sua realidade própria. Cuidadosamente ele coloca o particular como a instância separada que nada tem a ver com seus itens a nao ser onde eles se estruturam esteticamente, a estética é o laço que pode ligar as duas coisas. A instância visada é aquela suspensa sobre o acontecer e que vai guiando como um contexto íntimo, solitário, como uma ordem identitária única... O pensamento já não pode de modo algum ser realidade propriamente dita. Seu encontro se dará por um intermediador: a arte, onde conversam os itens íntimos e os itens resgatados...

Quero começar com Agustina Bessa-Luís, que fala de uma forma poética da importância da arte, e verás como é mais convincente quando a coisa é artística, porque por certo já ouvires diversas vezes essas idéias, mas não expressas de forma tão bela. Continuo com Eça para tornar presente na consciência aquilo que a arte tem como fruto. Proust em seguida. A explicação que ele traz é ingenuamente brilhante! Parece-nos comum ao primeiro passo, depois é especial porque não se limita como as teorias, mas abre a experiência para tudo mais. Parece então que a arte é o diálogo dito mais acima, entre o particular e o (quem sabe) universal? A arte é fechada hoje com uma elocubração sobre o ofício de viver de Cesare Pavese.

O objetivo aqui foi demonstrar em passos curtos a experiência da arte através de diferentes olhares. Por isso peguei textos de diferentes artistas e dei a eles uma ordem! Ordem fundamentada na intenção do diálogo humano com o abstrato. Ainda há o que ser dito... Boa leitura.

Sávio

Importância - Agustina Bessa-Luís


A arte é, provavelmente, uma experiência inútil; como a «paixão inútil» em que cristaliza o homem. Mas inútil apenas como tragédia de que a humanidade beneficie; porque a arte é a menos trágica das ocupações, porque isso não envolve uma moral objectiva. Mas se todos os artistas da terra parassem durante umas horas, deixassem de produzir uma ideia, um quadro, uma nota de música, fazia-se um deserto extraordinário. Acreditem que os teares paravam, também, e as fábricas; as gares ficavam estranhamente vazias, as mulheres emudeciam. A arte é, no entanto, uma coisa explosiva. Houve, e há decerto em qualquer lugar da terra, pessoas que se dedicam à experiência inútil que é a arte, pessoas como Virgílio, por exemplo, e que sabem que o seu silêncio pode ser mortal. Se os poetas se calassem subitamente e só ficasse no ar o ruído dos motores, porque até o vento se calava no fundo dos vales, penso que até as guerras se iam extinguindo, sem derrota e sem vitória, com a mansidão das coisas estéreis. O laço da ficção, que gera a expectativa, é mais forte do que todas as realidades acumuláveis. Se ele se quebra, o equilíbrio entre os seres sofre grave prejuízo.

Agustina Bessa-Luís, in 'Dicionário Imperfeito'

Seu fruto - Eça


A arte é tudo porque só ela tem a duração - e tudo o resto é nada! As sociedades, os impérios são varridos da terra, com os seus costumes, as suas glórias, as suas riquezas: e se não passam da memória fugitiva dos homens, se ainda para eles se voltam piedosamente as curiosidades, é porque deles ficou algum vestígio de Arte, a coluna tombada dum palácio, ou quatro versos num pergaminho.

Eça de Queirós, in 'Notas Contemporâneas'

(comentário)
Por esse ponto de vista, a arte seria a forma mais direta de se enxergar uma marcação identitária. Encontramo-nos através dela, e encontramos os outros; em qualquer tempo!

A comunicação - Proust


Somente pela arte podemos sair de nós mesmos, saber o que um outro vê desse universo que não é o mesmo que o nosso e cujas paisagens permaneceriam tão desconhecidas para nós quanto as que podem existir na lua. Graças à arte, em vez de ver um único mundo, o nosso, vemo-lo multiplicar-se, e quantos artistas originais existiem tantos mundos teremos à nossa disposição, mais diferentes uns dos outros do que aqueles que rolam no infinito e, muitos séculos após se ter extinguido o foco do qual emanavam, chamasse ele Rembrandt ou Ver Meer, ainda nos enviam o seu raio especial.

Marcel Proust, in 'O Tempo Reencontrado'

Ofício - Cesare Pavese


A arte de desenvolver os pequenos motivos para nos decidirmos a realizar as grandes acções que nos são necessárias. A arte de nunca nos deixarmos desencorajar pelas reacções dos outros, recordando que o valor de um sentimento é juízo nosso, pois seremos nós a senti-lo e não os que assistem. A arte de mentir a nós próprios, sabendo que estamos a mentir. A arte de encarar as pessoas de frente, incluindo nós próprios, como se fossem personagens de uma novela nossa. A arte de recordar sempre que, não tendo nós qualquer importância e não tendo também os outros qualquer espécie de importância, nós temos mais importância que qualquer outro, simplesmente porque somos nós.
A arte de considerar a mulher como um pedaço de pão: problema de astúcia. A arte de mergulhar fulminante e profundamente na dor, para vir novamente à tona graças a um golpe de rins. A arte de nos substituirmos a qualquer um, e de saber, portanto, que cada pessoa se interessa apenas por si própria. A arte de atribuir qualquer dos nossos gestos a outrem, para verificarmos imediatamente se é sensato.
A arte de viver sem a arte.
A arte de estar só.

Cesare Pavese, in 'O Ofício de Viver'

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

3 de dezembro de 2008


Hoje existe uma urgência em toda a gente. Toda a gente está chegando ao meio do caminho e desanimando por reflexões avulsas. Param e pensam, e por isso regressam às suas casas, com seus inimigos em seu encalço, saqueando suas terras e tomando suas casas, aos poucos, obrigando-lhes ao serviço militar contra a vontade. Talvez o destino pudesse ter sido diferente; se acreditassem mais poderiam ser presenteados com a pedra mística da vitória, com a experiência deliciosa do sucesso. E por isso existem aqueles que dizem: 'fiz isso e podia ter feito muito mais, só que não sabia.' Eu vos digo: Nunca conseguiremos fugir do obstáculo a não ser que desistamos do caminho! Existe o problema da visão, existe o problema dos míopes como eu, que titubeiam por não verem com clareza muito mais a frente. A questão toda vai ser da convicção, da sua verdade. Hoje trato da convicção através de Antoine de Saint-Exupéry, o autor de 'O pequeno príncipe', que constribui com sua visão daquilo que deve ser inquestionável para a razão. A mudança do ponto de vista para mudar a realidade está em voga nos grandes autores. E, para fincar estacas a respeito do que seja em si a convicção antes de ir além com o problema da visão, cito Ortega y Gasset para dizer que o homem está para dar sentido, e a convicção é isso em pureza; um sentido!
Depois vem Vergílio Ferreira com sua visão existencial sobre o fenômeno em voga aqui, desvendando sua presença no coração dos homens. Tenho talvez um interesse a mais aqui, ao que busco outra citação de Vergílio Ferreira, numa frase, em que se bem pensada possamos chegar ao real acontecer dessa convicção: a originalidade em ardência, que nos liberta do envolvimento para estarmos mais lúcidos diante dos fatos! A convicção então, se mostra como forma única de saber da vida... É necessário ter força apesar de tudo! Boa leitura!

Sávio

A linguagem - Saint-Exupéry

Quando as verdades são evidentes e absolutamente contraditórias, o que tens a fazer é mudar de linguagem. A lógica não serve para te ajudar a passares de um andar para o outro. Tu não prevês o recolhimento a partir das pedras. E, se falares do recolhimento com a linguagem das pedras, vais-te abaixo. Precisas de inventar essa palavra nova para dares conta de uma certa arquitectura das tuas pedras. Porque nasceu um ser novo, não divisível, nem explicável; porque explicar é demonstrar. E tu baptiza-lo então com um nome.
Como é que tu havias de raciocinar sobre o recolhimento? Como é que havias de raciocinar sobre o amor? Como é que havias de raciocinar sobre a propriedade? Não se trata de objectos, mas de deuses.

Antoine de Saint-Exupéry, in "Cidadela"

As estacas - Ortega y Gasset

A vida é primariamente encontrar-se, cada qual, submergido entre as coisas, e enquanto é apenas isso consiste em sentir-se absolutamente perdido. A vida é perdição. Mas por isso mesmo obriga, quer queiramos quer não, a um esforço para se orientar no caos, para se salvar dessa perdição. Este esforço é o conhecimento que extrai do caos um esquema de ordem, um cosmos. Este esquema do universo é o sistema das nossas ideias ou convicções vigentes. Quer queiramos quer não, vivemos com convicções e de convicções. O mais teoreticamente céptico existe apoiando-se num suporte de crenças sobre o que as coisas são. A vida é absoluta convicção. A dúvida intelectual mais extrema é vitalmente uma absoluta convicção de que tudo é duvidoso. E algo ou tudo ser duvidoso não é uma crença num ser menor do que qualquer outra de aspecto mais positivo.

Ortega y Gasset, in 'O Que é a Vida?'

A presença - Vergílio Ferreira

Esse horizonte-limite identifica-se com o que nos estrutura como destino que nos coube e que não tem explicação; esse horizonte-limite que o é em cada época, é a forma diversificada e actuante do que globalmente nós somos e em cada período se particulariza e hierarquiza para a indizível escolha e hierarquização do que em globo nós somos e em cada época se nos harmoniza na totalidade de nós.

Vergílio Ferreira, in 'Invocação ao Meu Corpo'

Convicção mirando a originalidade - Vergílio Ferreira

A grande originalidade não é dizer coisas novas mas ser novo diante das coisas velhas.

Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 3'

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

1º de dezembro de 2008


Hoje, no dia 1º de dezembro de 2008 tenho a dizer isso: a felicidade é complicada! Que forma mais simples de tratar de qualquer assunto que essa? Tratar da felicidade é um ato constantemente complicado, porque na felicidade em si não existem complicações, as complicações estão nos alicerces, na estrutura, na fundamentação desse entendimento. O tratar da felicidade não é um tratar do ato de ser feliz, mas um ato de tratar do como se chegar, do caminho a ser percorrido, mas sem olhar pela estrada, um olhar para o modo de se andar, e no que levar consigo, ou no que não levar... A felicidade traiçoeira que nos leva para os mais diferentes caminhos, e de repente não é mais felicidade, não é felicidade por certo. Ela existe tal qual a beleza que Hegel tenta nos mostrar: ela ilumina, é livre e liberta, e se em algum ponto ela prendeu, se em algum ponto ela falhou, certamente não se tratava de felicidade. A felicidade é um ponto luminoso como o sol, e só irradia, não há o que se esconda de sua forma, e não há quem confunda quando a encontra, poderemos subestimar, mas confundi-la é um trabalho complicado, quase que exigiria esforço para tal. E tratando dessa tal felicidade, começo com Agostinho da Silva dizendo dela como uma condição individual. Em seguida apresento outro aspecto com Stuart Mill: o da compensação da felicidade que por certo é importantíssimo, será ela algo que compense? Existe ainda mais a ser mostrado, e nessa busca de outros aspectos a não serem esquecidos trago a mostra da felicidade em relação às condições sociais, com Luc de Clapiers Vauvenargues. Depois tem Epicteto falando sobre a firmeza da felicidade, e Epicuro falando sobre uma vida simples. A felicidade vai ser uma característica essencial da vida ao final!

Sávio

O aspecto individual - Agostinho da Silva


Nem paz nem felicidade se recebem dos outros nem aos outros se dão. Está-se aqui tão sozinho como no nascer e no morrer; como de um modo geral no viver, em que a única companhia possível é a daquele Deus a um tempo imanente e transcendente e a dos que neles estão, a de seus santos. Felicidade ou paz nós as construímos ou destruímos: aqui o nosso livre-arbítrio supera a fatalidade do mundo físico e do mundo do proceder e toda a experiência que vamos fazendo, negativa mesmo para todos, a podemos transformar em positiva. Para o fazermos, se exige pouco, mas um pouco que é na realidade extremamente difícil e que não atingiremos nunca por nossas próprias forças: exige-se de nós, primacialmente, a humildade; a gratidão pelo que vem, como a de um ginasta pelo seu aparelho de exercício; a firmeza e a serenidade do capitão de navio em sua ponte, sabendo que o ata ao leme não a vontade de um rei, como nos Descobrimentos, mas a vontade de um rei de reis, revelada num servidor de servidores; finalmente, o entregar-se como uma criança a quem sabe o caminho. De qualquer forma, no fundo de tudo, o que há é um acto de decisão individual, um acto de escolha; posso ser, se tal me agradar, infeliz e inquieto.

Agostinho da Silva, in 'Textos e Ensaios Filosóficos'

Vale a pena - Stuart Mill


Poucas criaturas humanas consentiriam ser transformadas em qualquer dos animais inferiores em troca da promessa do mais pleno acesso aos seus prazeres bestiais; nenhum ser humano inteligente consentiria tornar-se um tolo, nenhuma pessoa instruída, um ignorante, ninguém de sensibilidade e consciência, um ser egoísta e reles, e isso mesmo que eles fossem persuadidos de que o tolo, o beócio ou o infame estavam mais satisfeitos com a sua sorte do que eles estão com a deles. (...) É melhor ser um ser humano insatisfeito que um porco satisfeito; melhor ser um Sócrates insatisfeito que um tolo satisfeito; e, se o tolo ou o porco tem uma opinião distinta, é porque eles só conhecem o seu próprio lado da questão.

John Stuart Mill, in 'Utilitarismo'

E as condições sociais? - Luc de Clapiers Vauvenargues


Um erro sem dúvida bem grosseiro consiste em acreditar que a ociosidade possa tornar os homens mais felizes: a saúde, o vigor da mente, a paz do coração são os frutos tocantes do trabalho. Só uma vida laboriosa pode amortecer as paixões, cujo jugo é tão rigoroso; é ela que mantém nas cabanas o sono, fugitivo dos grandes palácios. A pobreza, contra a qual somos prevenidos, não é tal como pensamos: ela torna os homens mais temperantes, mais laboriosos, mais modestos; ela os mantém na inocência, sem a qual não há repouso nem felicidade real na terra.
O que é que invejamos na condição dos ricos? Eles próprios endividados na abundância pelo luxo e pelo fasto imoderados; extenuados na flor da idade por sua licenciosidade criminosa; consumidos pela ambição e pelo ciúme na medida em que estão mais elevados; vítimas orgulhosas da vaidade e da intemperança; ainda uma vez, povo cego, que lhe podemos invejar?

Consideremos de longe a corte dos príncipes, onde a vaidade humana exibe aquilo que tem de mais especioso: aí encontraremos, mais do que em qualquer outro lugar, a baixeza e a servidão sob a aparência da grandeza e da glória, a indigência sob o nome da fortuna, o opróbrio sob o brilho da posição; aí veremos a natureza sufocada pela ambição, as mães separadas dos seus filhos pelo amor desenfreado do mundo, os filhos esperando com impaciência a morte dos pais, os irmãos opostos aos irmãos, o amigo ao amigo: aí o interesse sórdido e a dissipação em vez dos prazeres; o despeito, o ódio, a vergonha, a vingança e o desespero sob a máscara falsa da felicidade. Onde reina tão imperativamente o vício, nunca é demais repeti-lo, não creiamos que a tranquilidade de espírito e o prazer possam habitar.

Luc de Clapiers Vauvenargues, in 'Ensaios de Moral e de Filosofia'

Sua firmeza - Epicteto


Das coisas que há no mundo, umas estão na nossa mão e outras não. Na nossa mão estão a opinião, a suspeita, o apetite, o aborrecimento, o desejo e, numa palavra, todas as obras que são nossas. Não estão na nossa mão o corpo, a fazenda, nem a honra (reputação), nem o senhorio, nem com efeito nenhuma das que não são obra nossa. As coisas que estão na nossa mão, de sua natureza são livres e senhoras sem impedimento nem embaraço. E as que não estão na nossa mão, de si são fracas, servis, embaraçadas e sujeitas.
Pois olha que, se tiveres por livre o que se sua natureza não o for, e por teu o que em efeito não o é, haverás de embaraçar-te, e lamentar-te, e queixar-te dos deuses e dos homens. Mas se só o que é teu tiveres por tal, e por alheio, como o é, o que não é teu, não haverá nunca quem te faça força; a ninguém acusarás; de ninguém te queixarás; nenhuma coisa farás contra tua vontade; não terás nenhum inimigo; ninguém te fará mal; nem receberás nenhum dano nem perda.

Se vires algum homem muito honrado, ou poderoso, ou por qualquer outra via engrandecido, olha que não te deixes levar por essas aparências e o tenhas por bem-aventurado; porque se a importância, e ser do sossego se puder ser no que está em nossa mão, nem a inveja, nem a emulação terão lugar em nada; e tu mesmo, antes que ser imperador, cônsul, ou senador, tomarias ser livre e senhor de ti mesmo: para o que há um só caminho, que é o desprezo de todas as coisas que não estão na nossa mão.
Traz sempre diante dos olhos a morte, desterros e tudo que se tem por trabalho, e mais que tudo a morte. E com isto nem terás nenhum pensamento baixo, nem desejarás nada com muita força.
Das coisas que servem ao corpo não se há-de tomar mais de quanto convenha para o ânimo; como de comer, beber, vestido, e casa, e serviço: o que não serve senão de vaidade, ou de delícias, deita-o de ti.
Quando alguém te fizer mal, ou disser de ti, lembra-te que cuidava que fazia bem naquilo, e assim lhe pareceu; porque não pode ser que ele siga o teu entendimento, senão o seu. E se ele julga mal das tuas coisas, sua é a perda, pois que vive enganado. Porque se um julga a verdade por mentira, não é por isso ofendida a verdade, senão o que a não conheceu. Com esta consideração sofrerás com ânimo o que disser mal de ti, e a tudo dirás: assim lhe pareceu a ele.
Se a razão, que deve regular todas as coisas, é desregrada, quem a regulará a ela?

Epicteto, in 'Manual'

A vida simples - Epicuro


Devemos estudar os meios de alcançar a felicidade, pois, quando a temos, possuímos tudo e, quando não a temos, fazemos tudo por alcançá-la. Respeita, portanto, e aplica os princípios que continuadamente te inculquei, convencendo-te de que eles são os elementos necessários para bem viver. Pensa primeiro que o deus é um ser imortal e feliz, como o indica a noção comum de divindade, e não lhe atribuas jamais carácter algum oposto à sua imortalidade e à sua beatitude. Habitua-te, em segundo lugar, a pensar que a morte nada é, pois o bem e o mal só existem na sensação. De onde se segue que um conhecimento exacto do facto de a morte nada ser nos permite fruir esta vida mortal, poupando-nos o acréscimo de uma ideia de duração eterna e a pena da imortalidade. Porque não teme a vida quem compreende que não há nada de temível no facto de se não viver mais. É, portanto, tolo quem declara ter medo da morte, não porque seja temível quando chega, mas porque é temível esperar por ela.
É tolice afligirmo-nos com a espera da morte, visto ser ela uma coisa que não faz mal, uma vez chegada. Por conseguinte, o mais pavoroso de todos os males, a morte, nada significa para nós, pois enquanto vivemos a morte não existe. E quando a morte veio, já não existimos nós. A morte não existe, portanto, nem para os vivos nem para os mortos, pois para uns ela não é, e pois os outros não são mais.
(...) Deve, em terceiro lugar, compreender-se que, de entre os desejos, uns são naturais e os outros vãos e que, de entre os naturais, uns são necessários e os outros somente naturais. Finalmente, de entre os desejos necessários, uns são necessários à felicidade, outros à tranquilidade do corpo e outros à própria vida. Uma teoria verídica dos desejos ajustará os desejos e a aversão à saúde do corpo e à ataraxia da alma, pois é esse o escopo de uma vida feliz, e todas as nossas acções têm por fim evitar ao mesmo tempo o sofrimento e a inquietação.

Quando o conseguimos, todas as tempestades da alma se desfazem, não tendo já o ser vivo de dirigir-se para alguma coisa que não possui, nem buscar outra coisa que possa completar a felicidade da alma e do corpo. Porque nós buscamos o prazer somente quando a sua ausência causa sofrimento. Quando não sofremos, não sabemos que fazer do prazer. E por isso dizemos que o prazer é o começo e o fim de uma vida venturosa. O prazer é, na verdade, considerado por nós como o primeiro dos bens naturais, é ele que nos leva a aceitar ou a rejeitar as coisas, a ele vamos parar, tomando a sensibilidade como critério do bem. Ora, pois que o prazer é o primeiro dos bens naturais, segue-se que não aceitamos o primeiro prazer que vem, mas em certos casos desdenhamos numerosos prazeres quando têm por efeito um tormento maior. Por outro lado, há numerosos sofrimentos que reputamos preferíveis aos prazeres, quando nos trazem um maior prazer. Todo o prazer, na medida em que se conforma com a nossa natureza, é portanto um bem, mas nem todo o prazer é entretanto necessariamente apetecível. Do mesmo modo, se toda a dor é um mal, nem toda é necessariamente de evitar. Daqui procede que é por uma sábia consideração das vantagens e dissabores que traz que cada prazer deve ser apreciado. Na verdade, em certos casos, tratamos o bem como um mal e, noutros, o mal como um bem.
Depender apenas de si mesmo é, em nossa opinião, grande bem, mas não se segue, por isso, que devamos sempre contentar-nos com pouco. Simplesmente, quando a abundância nos falece, devemos ser capazes de contentar-nos com pouco, pois estamos persuadidos de que fruem melhor a riqueza aqueles que menos carecem dela e que tudo que é natural se alcança facilmente, enquanto é difícil obter o que o não é. As iguarias mais simples dão tanto prazer como a mesa mais ricamente servida, quando está ausente o tormento que a carência determina, e o pão e a água causam o mais vivo prazer quando os tomamos após longa privação. O hábito da vida simples e modesta é portanto boa maneira de cuidar da saúde e torna, além disso, o homem corajoso para suportar as tarefas que deve necessariamente realizar na vida. Permite-lhe ainda, eventualmente, apreciar melhor a vida opulenta e endurece-o contra os reveses da fortuna. Por conseguinte, quando dizemos que o prazer é o soberano bem, não falamos dos prazeres dos debochados, nem dos gozos sensuais, como pretendem alguns ignorantes que nos combatem e desfiguram o nosso pensamento. Falamos da ausência de sofrimento físico e da ausência da perturbação moral.
Porque não são nem as bebidas e os banquetes contínuos, nem o prazer do trato com as mulheres, nem o júbilo que dão o peixe e a carne com que se enchem as mesas sumptuosas que ocasionam uma vida feliz, mas hábitos racionais e sóbrios, uma razão buscando incessantemente causas legítimas de escolha ou de aversão e rejeitando as opiniões susceptíveis de trazerem à alma a maior perturbação.
O princípio de tudo isto e, ao mesmo tempo, o maior bem é, portanto, a prudência. Devemos reputá-la superior à própria filosofia, pois que ela é a fonte de todas as virtudes que nos ensinam que não se alcança a vida feliz sem a prudência, a honestidade e a justiça e que a prudência, a honestidade e a justiça não podem obter-se sem o prazer.
As virtudes, efectivamente, provêm de uma vida feliz, a qual, por sua vez, é inseparável das virtudes.

Epicuro, in "Carta a Meneceu"

A vida no fundo - Philip Roth


Uma catástrofe genuína, a despeito da ideologia, da política e da história, é sempre, em seu cerne, um anticlímax pessoal. A vida não pode ser acusada de nenhuma deficiência quando se trata de banalizar as pessoas. Temos de tirar o chapéu para a vida, em homenagem às técnicas de que ela dispõe de despojar um homem de toda a sua relevância e esvaziá-lo completamente de seu orgulho.

Philip Roth